A mitologia grega conta que os filhos de Urano eram tão desmedidos e deformados que enojaram o pai, por isso este os impedia de sair do ventre de Gaia. Foi então que seu filho mais novo, Cronos, se rebelou contra ele e o castrou, fazendo o Céu afastar-se da Terra, e criando a espaço-temporalidade. Desde então o tempo passa e Cronos, não se distanciando tanto assim do mal exemplo de seu pai, devora seus filhos assim que estes nascem. Por mais que o mundo tenha adquirido uma aparência de eternidade circular, a vida ainda parece estar sob o reinado deste tirano e todos aqueles que amamos estão submetidos ao seu domínio. As coisas duram para nós apenas por um frágil e delicado momento, para logo depois deixarem de ser e voltarem ao nada.
A irreversibilidade do tempo é uma das características essenciais da natureza. Afinal, por que o passado é diferente do futuro? À sua maneira, a física se dedicou a entender este estranho fenômeno: o que significa o tempo passar? Significa que tudo está num lento processo de deterioração, isto é, que os acontecimentos são irreversíveis. Em outras palavras, podemos dizer que a flecha do tempo segue sempre numa só direção, é impossível fazê-la voltar. É fácil, por exemplo, misturar os ingredientes de uma receita, mas muito difícil de separá-los. Uma taça de vinho se quebra com facilidade, mas é dá muito trabalho fazê-la retornar ao estado anterior.
Nós fazemos parte das coisas que quebram, e ser no tempo é estar condenado a não ser. Mas nos revoltamos contra esta condição, porque acreditamos que algumas coisas simplesmente não deveriam acabar tão cedo. Não é justo tudo estar em constante transformação. Não parece certo tudo o que é estar condenado a não ser. Mesmo um vidro à prova de balas, não é à prova do tempo, atirando sessenta segundos por minuto. Tudo é arrastado pelo tic-tac do relógio .
O tempo leva, a dor constrange e parece que não há nada que se possa fazer, é um mandamento divino e irrevogável. Mas não tem jeito, às vezes queremos que o tempo volte. E para isso, há algumas saídas subjetivas: a fuga nostálgica, por exemplo, quando nos refugiamos naquilo que passou através da uma lembrança, ignorando o presente e desprezando o futuro; outros apostam na flecha da esperança lançada para o futuro, e aguardam o dia da felicidade chegar, como pescador que lança a linha esperando o peixe morder o anzol, o que muitas vezes não passa de uma ilusão.
Há também aqueles que inventam artifícios para parar o tempo, o que, apesar de fadado ao fracasso, é bem interessante. Mas parece que lamentar o passado ou futuro é a condição da maioria. As crianças esperam o dia em que serão mais velhas, enquanto os velhos lembram de seu tempo da infância perdido para sempre. Onde está o presente? Sempre fluindo, ou melhor, escorrendo por entre nossas mãos. Pensando nisso, este não é mais um texto sobre aprender a fluir, é um texto sobre aprender a segurar!
Se o tempo dá com uma mão e tira com a outra, fazemos o possível para recusar o segundo momento. Kintsugi é isso, a arte japonesa de restaurar um objeto que se quebrou, colando suas partes com ouro. Esta belíssima técnica nasceu no século XV, para recompor objetos que o tempo quis levar, mas a mão humana fez ficar. Pelo cuidado, esta estética delicada de unir o que foi desunido mostra que aquilo que se quebrou pode ser recomposto, e que o refeito, mais que perfeito, se torna único.
Esta é a questão, queremos que as coisas durem, há algo de errado nisso? Não. Temos dificuldades de lidar com o tempo e negociamos com ele aquilo que é mais importante para nós. Neste momento, precisamos de mãos delicadas que prezam por aquilo que amam e estão dispostas a agir com o cuidado e a atenção necessários. As mãos e o ouro são capazes de curar, de re-fazer, através de re-encontros, sempre no meio, na costura. Colar com ouro aquilo que o tempo quis apartar, fazer reluzir as ligações, mesmo que frágeis, ser capaz de restaurar a força e uso daquele objeto.
A técnica do Kintsugi mostra que aquilo que seria descartado pode tornar-se distinto! Restaurado, o objeto adquire uma nova grandeza. Afinal, quem disse que o danificado também está perdido? Ora, não somos todos frágeis cerâmicas que podem quebrar? Cada cicatriz conta esta mesma história. E a arte da restauração mostra que é possível tirar do acaso mais do que aquilo que ele nos reserva!
Se o tempo constitui e devora mundos, então uma pergunta começa a se formar: o que nós queremos conservar e o que nós podemos deixar ir? A nossa luta por conservar é uma força ética que se encontra com uma força cosmológica, o cuidado limitado da restauração enfrenta a força infinita da entropia, encontrando os meios, mesmo que limitados, de proteger aquilo que valorizamos. É possível reunir aquilo que o tempo quis levar! A vontade de restaurar tem suas razões, algumas coisas são levadas de nós muito rápido. Nós lutamos contra a morte? De certa maneira sim. Contra o novo? Talvez. Claro, algumas devemos deixar ir, mas outras vale o esforço de restaurar.
Através do Kintsugi a cultura japonesa aprendeu a enfrentar o deus-tempo. Assim como um artista marcial, com um golpe preciso, consegue derrotar um oponente mais forte, a técnica de colar com ouro aprendeu a passar a perna no tempo. Somos capazes de vencer os deuses? Não, mas com inteligência podemos enganá-los. Os deuses instauram e destituem, nós restauramos e insistimos, este cuidado faz as coisas durarem um pouco mais.
Em suma, concluímos que não é possível voltar no tempo e desfazer um erro ou evitar um acidente. Cronos, também conhecido como Saturno, é definitivo e seu decreto temporal é irrevogável. Mas enquanto vivermos não estaremos entregues, porque é possível, com muita energia, juntar os cacos de vidro e colá-los novamente. E para alguns de nós isso vale o trabalho.
Referências
- O Livro do Tempo – João Pimenta
- O Tempo – o sonho de matar Chronos – Guido Tonelli
- Kintsugi [cuidado, frágil]
- Memória – Carlos Drummond de Andrade
Gostei muito do texto disponibilizado, parabéns. Excelentes reflexões que infelizmente nem sempre posso acompanhar.Gosto de mitologia, especialmente a grega. Nessa linhagem de erros na luta contra o tempo, talvez Zeus tenha se saído melhor.