Enquanto Adolf Eichmann, em 1950, emitia passaportes falsos para fugir para a Argentina, sua irmã mais nova, Adelina Eichmann andava apressada pelas ruas, carregando uma cesta repleta de pães para entregar no orfanato perto do hospital onde trabalhava. O que se tornara uma iguaria voltava agora às padarias depois de anos de escassez e ela estava feliz. Seu gesto alimentava as crianças que descobriram a fome durante a guerra, enquanto seu sorriso aquecia as almas ainda machucadas daqueles que perderam os pais durante aquele evento sangrento. O ambiente todo se iluminava quando Adelina entrava na sala, as crianças gritavam e corriam para abraçá-la. Ela tinha uma aura de bondade que brilhava como um farol, no meio de tanta escuridão. O que poucos sabiam, era que aquela mulher era a irmã de um dos monstros mais desprezíveis do nazismo, que seria capturado e levado para Israel dez anos depois, onde seria julgado e executado por seus imperdoáveis crimes durante a guerra.
Como a luz e a sombra, o bem e o mal aparecem frequentemente juntos, e é fácil ser enganado pelas ilusões de ótica que os envolvem. Isto porque muitas vezes o mal aparece disfarçado, para não fazer alarde. É notável a sua capacidade de dissimular e fingir ser o que não é. Geralmente se veste de indiferença, para em seguida dizer que as coisas são como são e que não é possível mudar. O mal indiferente dá de ombros, se esconde por trás da ordem dos burocratas e a conformidade das tradições, e afirma que a falta do número do protocolo impede a continuação do serviço requisitado. Esta maldade se sente inocente, diz até que preferia fazer outra coisa, queria fazer mágica quando criança, estudar arquitetura quando adolescente, mas acabou seguindo pela engenharia por pressão dos pais e agora trabalha para o partido simplesmente porque tem mais estabilidade.
Parecia fácil para Eichmann se entorpecer de documentos burocráticos e se esquecer que as pessoas nas câmaras de gás eram seres humanos – do mesmo modo que os soldados israelenses hoje esquecem que crianças palestinas são crianças. No nosso caso, é fácil ignorar pessoas no farol pedindo dinheiro quando estamos atrasados para a reunião onde nosso chefe está cobrando números e resultados. É mais fácil ignorar a dor quando ela não é nossa, quando está do outro lado, e ainda mais quando está distante.
Há muitas maneiras de fazer o mal, e a banal é a mais comum. É claro que existe o mal declarado, torpe e incurável, aquele que deformou a alma e criou uma ameaça para a sociedade, mas até mesmo este é possível de compreender, pois raramente o vilão cruel deseja o mal para si mesmo e os seus. Podemos dizer que a intencionalidade do mal, é efeito de uma alma pequena, egoísta, fechada a todos aqueles além de seu estreito círculo de beneficiários. Seja o indivíduo, a família ou até mesmo o país, a maldade encontra sempre uma justificativa, por mais abjeta que seja. Poderíamos dizer que Hitler queria ver a Alemanha renascer, que Eichmann estava preservando o seu emprego. São pessoas más intencionadas, claro, pois querem deliberadamente prejudicar o outro, mas sempre pensando em si mesmas ou neste círculo estreito.
Passemos então para o outro lado da linha divisória. Pois também existem muitas maneiras erradas de fazer o bem. Os mais cínicos gostam de dizer isso com um sorriso sarcástico nos lábios. Para eles, todo gesto de bondade esconde uma dose de interesse próprio. Doações milionárias? Ora, isto não passa de uma estratégia de marketing pessoal. Ações bondosas e descomprometidas? Que nada, ele apenas está assegurando o seu lugar no paraíso. Mesmo um inocente buquê de flores não passa de um subterfúgio para dar vazão ao interesse sexual. Toda boa ação é comparada a macacos tirando carrapatos das costas uns dos outros. Enfim, concluem os cínicos de plantão, a maioria das pessoas só quer saber se esta boa terá ou não um retorno pessoal.
Por fim, encontramos a banalidade do bem que parece ser a mais rara, mas queremos mostrar que não. Estamos desacostumados em seguir o rastro desta ação tão esquiva, mas ela pode ser encontrada em vários lugares. Quando menos se espera alguém para o carro na faixa de pedestres para o outro passar; olhamos para o lado e um sujeito doa sangue na campanha do hospital mais próximo; aquela ali envia roupas para o outro lado do país depois de uma enchente; e esta, inexplicavelmente, acolhe uma criança abandonada que estava vivendo na rua. O que é isso? O que é uma boa ação quando se afasta tanto do benefício próprio que já não orbita mais em torno dele? O que é uma boa ação quando não envolve mais um cálculo de prazeres? Como justificá-la? Muitos diriam que ela não existe, é pura e simplesmente uma ilusão de ótica. A psicologia evolucionista faz questão de mostrar que os pilares da bondade estão podres, mas de alguma forma o edifício continua em pé.
Ora, a banalidade do Bem é tão compreensível quanto sua companheira: a banalidade do mal. Trata-se de uma bondade sem ego, para além do benefício próprio. Neste sentido, ela é inversamente proporcional à maldade banal, pois faz o bem quase sem perceber. Não está entorpecida, está apenas acostumada a ser assim. Sua justificativa é tão rasa quanto a banalidade de Eichmann, pois se pudesse falar, talvez diria “ora, é assim que as coisas são”. A vida moderna popularizou a banalidade do mal e turvou a banalidade do bem; hoje parece necessário um esforço para ser bom, e a banalidade do bem não combina com esta dinâmica de vida. Ela parece vir quando deixamos de pensar tanto. São gestos simples difíceis de serem captados pelo rigoroso radar da moral: um Bom Dia simpático dito sem querer, um Obrigado sincero e espontâneo, um estranho que para e pergunta se precisa de ajuda para carregar as compras ou trocar um pneu furado.
Como um arco-íris, a banalidade do bem talvez seja efeito de um enorme conjunto de milhares de pequenas gotículas que pairam no ar, e que transparecem seu brilho apenas quando têm a sorte de serem atravessadas pela luz num ângulo determinado. Num momento tempestuoso como o nosso, onde a fuligem do egoísmo obscureceu nossas ações, a banalidade do bem seria este efeito de ótica que aparece sem ser chamado e dá mostras da multiplicidade furtiva que o compõe. Se há muitas maneiras banais de fazer o mal, constatamos que também existem muitas maneiras banais de fazer o bem.
Infelizmente, Adelina Eichmann nunca existiu, e Hannah Arendt jamais teve a chance de escrever artigos para o The New Yorker intitulados “A Banalidade do Bem”. Sendo assim, este conceito continua desconhecido e misterioso. Mas não tem problema, existem coisas que simplesmente acontecem, sem que ninguém tenha procurado as palavras certas para descrevê-las. Mesmo que a filosofia não preste muita atenção, isso não impede que estas boas ações gratuitas continuem existindo.
¹ Eichmann era o mais velho de cinco filhos, dos quais mal temos informações. A figura descrita de Adelina na verdade trata-se apenas de um recurso estilístico para criar uma oposição imagética entre o bem e o mal.
² O Bicho – Manuel Bandeira
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
³ Aqui é importante lembrar o prefácio da terceira parte da Ética de Baruch de Espinosa: é mais importante compreender os afetos do que julgá-los. O Filósofo defende que até mesmo os piores afetos podem ser pensados como linhas e retas, e compreendidos como efeitos de determinadas causas
Referências:
- O Bicho – Manuel Bandeira
- Jojo Rabbit – Taika Waititi
- Ética – Espinosa
- A Igreja do Diabo – Machado de Assis
- Eichmann em Jerusalém – Hannah Arendt