Todas as coisas se dissipam onde tiveram a sua gênese, conforme a necessidade; pois pagam umas às outras castigo e expiação pela injustiça, conforme a determinação do tempo” – Anaximandro, Fragmento 1
Nascer é ultrapassar o limiar que nos separa do todo. Ou melhor, nascer é destacar-se do nada, é volver-se numa nova direção. Nascer é confrontar o caos, opondo-lhe resistência, pois quem resiste ao homogêneo, nasce. E ao chegar, encontra tudo que constitui este movimento bruto. Com maior ou menor força, nascemos. Não é fácil vir ao ser, ele contrapõe-se com brônzea dureza, e se nascemos é para num primeiro momento desafiar o caos, insistir em ser algo diferente dele, como a onda quer desprender-se do mar. Tudo que nasce institui algo novo e firma um ponto, como a âncora mergulhada no desconhecido, dentro dele mas indiscutivelmente fora. Nascer é romper a superfície para tomar um pouco de ar. A primeira inspiração queima os pulmões virgens como aguardente na garganta inexperiente. É uma violência separar-se do todo e dizer-lhe não.
Sem passado, apenas com o futuro pela frente, ficamos abismados em ser, olhando tudo com curiosidade. Nascer é entusiasmar-se com a mistura de fogo, terra, água e ar. Tudo existe com força e magia aqui fora, se prestarmos atenção, todas as coisas gritam seus nomes; elas brilham, brilham até demais. Vemos suas cores, cheiramos seus perfumes, tocamos e somos tocados pelo mundo. Sentimos a existência como algo absurdamente real, no entanto, misteriosa. E como poderia ser diferente? Esta é a distância sem a qual não se poderia falar de liberdade. O desconhecido é o caminho pelo qual se pode andar, e quem anda logo quer correr, pular, cair, ralar o joelho, ver o sangue vermelho escoar.
Equilibrados no alto da colina, com cicatrizes e sonhos, conciliamos passado e futuro. Viver é um constante sair do lugar, é aceitar ser estrangeiro em sua própria casa. A vida ofuscante olha para nós com o infinito amarelo de um dia quente de verão. O Sol é um deus ao mesmo tempo distante e próximo, que queima e alimenta as pétalas de flor que se abrem sob o excesso de luz. Viver é sobreviver aos abusos da limpidez e da insolação. Trata-se de uma espécie de exagero indefinido, um desconforto bom, uma beleza incômoda, um lento processo de afirmar a estranheza escaldante das coisas que são.
Viver é deixar tudo isso penetrar fundo nas entranhas, abrindo espaço onde antes existia apenas carne, ossos e sangue. Não é fácil ser, vive sem conforto quem aceita neste raro momento finito viver. Os deuses são diferentes, eles não choram nem riem. Mas tornar-se duro, para nós, é como morrer antes da hora. A vida é aprender a sentir, a tocar uns aos outros sem desafinar-se. As coisas não sabem cantar do jeito que nós sabemos, o verde da grama entende mais deste ofício que o cinza do asfalto. Singularizar-se através dos encontros é uma arte secreta, quase esquecida de tão sutil. Na verdade, aprender a viver é uma habilidade tão insólita que poucos a conhecem pelo nome.
Com muito passado e pouco futuro, aproxima-se o limiar, é nas portas do desconhecido que a morte envolve nossa melodia com seu silêncio ensurdecedor. Em segredo ela nos seduz, morrer é voltar para casa. Os iludidos e os fatigados não podem deixar de suspirar de alívio, o filho pródigo retorna ao lar cansado e quer apenas dormir. O sono eterno é sedutor, mas não é tão fácil assim deixar de ser, afinal, a festa da vida pode ser tão bela. Aos que aprenderam a enterrar seus deuses, resta somente o consolo de ao menos existir vida antes da morte. A escuridão apaga todas as cores, é triste ver o céu azul tornar-se amarelo, laranja e por fim uma insensível escuridão. O abismo que se abre, mesmo que povoado de estrelas, clama pelo retorno da luz. Todos esperam a aurora mais que o crepúsculo.
Somente no fim é possível perceber: a lua minguante afunda na escuridão sem hesitar, confiante de voltar a brilhar límpida no porvir; o outono mergulha num frio congelante, confiante de que Perséfone voltará à superfície explodindo em cores; mesmo o Sol Invencível perde parte de seu esplendor quando encontra o horizonte. As coisas não sussurram adeus quando mergulham no vazio, porque sabem do seu retorno. O todo e a parte se reconciliam conforme a determinação do tempo. Mesmo sob protestos, o todo prevalece sobre as partes e as ondas sempre retornam ao mar. Há um tempo de nascer, um tempo de viver, um tempo de morrer e um tempo de voltar. Tudo revolvendo-se, revoltando-se e refazendo-se para depois de misturado, renascer e viver tudo mais uma vez.
Referências
- Os pré-socráticos – Anaximandro, §1 – org. Gerd Bornheim
- Mil Coisas Invisíveis – Nascer, Viver, Morrer – Tim Bernardes
- Aforismos para a Sabedoria de Vida – Das diferenças das idades da vida – Schopenhauer
- O mito do Eterno Retorno – Mircea Eliade
Caralho, brother! Que texto fodaaaaaa…
Adorei as referências ao Tim Bernardes, texto incrível!