Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.
Passo e fico, como o Universo.Alberto Caeiro
Pense que, neste momento, seu corpo se apropriou dos nutrientes que você ingeriu no almoço e está produzindo novas células para substituir as antigas. Enquanto você lê este texto, o ar vai atravessar seus pulmões diversas vezes. Perceba a facilidade com que tudo entra e sai, e que faz com que, ao longo dos anos, toda a matéria do seu corpo venha a mudar. Os átomos vêm e vão, é todo um universo particular que dança numa longa troca de pares, que fazem e se desfazem, construindo e destruindo os pequenos blocos de existência. Aceite, tudo o que você é pode ser desmontado para fazer algo completamente novo. O barco que navega sobre as águas não é tão diferente do mar profundo que o espreita.
Quem somos nós? Alguns defenderiam que, mesmo sob todas as mudanças, se uma forma se mantém, ainda somos os mesmos. Ou seja, a matéria vem e vai, mas a forma é a responsável por aquilo que chamamos de identidade. A continuidade formal do frágil barquinho certamente nos ajuda a compreender a identidade como uma luta pela conservação na turbulenta travessia do rio da existência. Desta maneira, bastaria cada parte do corpo sempre ser substituída por outra condizente com a forma original: retire uma peça, mas a substitua imediatamente por outra do mesmo tamanho e na mesma posição: se os dentes de leite caírem, que nasçam logo os dentes definitivos; se uma unha for roída pela ansiedade, que seja compensada pelo crescimento rápido de uma nova; mesmo os fios de cabelo arrancados no momento de desespero precisam voltar a crescer com a mesma cor. E enquanto a proporção e correlação das partes se mantiver, a identidade continuará intacta, mesmo em face das infinitas mudanças.
Entretanto, não é bem assim que acontece. Um dia nasce o primeiro fio branco em nossa cabeça, no outro, um dente cariado é arrancado para nunca mais crescer, e percebemos que existem coisas que vão e não voltam. Pelo visto nossa identidade não esta na matéria, nem na forma. Onde procurá-la então? Talvez esteja nas funções que somos capazes de executar. Enquanto alguém andar pelas ruas de atenas questionando os jovens sobre suas atitudes, desafiando os poderosos em suas convicções e sendo amado por Alcibíades, poderá ser chamado de Sócrates, não importa se está mais gordo ou mais magro, desde que exerça tais atividades. Ora, então o que dá a identidade são as ações que um corpo exerce?
E novamente precisamos admitir que não pode ser tão simples assim. Ao longo da vida uns desenvolvem intolerância à lactose, enquanto outros aprendem a falar uma língua nova. O que fazer se mesmo as funções mudam? O recém formado sabe algo que o calouro ainda não aprender, e o especialista em outra área tornou-se perito em detalhes que recém formado sequer poderia imaginar. Somos capazes de coisas diferentes ao longo da vida, para mais ou para menos, e mesmo o frágil barquinho pode ser equipado com um remo, uma vela ou uma âncora que antes não estavam lá.
A única conclusão possível é que nós nos transformamos ao longo da vida, e a única identidade possível é uma história destas sucessivas mudanças. Eis o nosso último refúgio, somos uma história ininterrupta em contínua transformação, somos a duração de um corpo existindo e se modificando. A identidade é o conjunto de mudanças que acontecem em nós ao longo do tempo. Esta realização temporal arrasta consigo todas as formas identitárias fixas, não está ligada à composição material nem à forma, e sim à continuidade de transformações que se acumulam na história de um objeto ou pessoa.
Por que uma criança é tão diferente de um adulto? Não apenas pela maneira com que afeta e é afetada pelo mundo, mas pelo caminho que a trouxe até aqui. É isso que nos torna ao mesmo tempo semelhantes e diferentes a quem éramos na infância. Em outras palavras, todo navio que chega ao porto precisa contar de onde veio e para onde está indo. A questão não é se as partes do nosso corpo são as mesmas, nem se a forma corporal é preservada, nem mesmo se as funções deste corpo se mantêm intactas, a identidade é algo que só pode ser encontrada nas mudanças.
Estamos mais uma vez falando de tempo, pois tudo o que dura, precisa mudar, e só o pode fazer no grande mar de relações que extravasa e constitui seu horizonte. Estamos no tempo, somos um fluxo contínuo, e as palavras mal parecem dar conta do movimento que somos. Navegar por esses mares é saber que todas as partes são móveis, e o que interessa é o percurso sincronizado que elas realizam.
Dizem que quando Teseu aportou no cais ateniense com seu majestoso navio, e desceu sob os aplausos de seus conterrâneos, um jovem e rico admirador insistiu para que o seguisse até um galpão afastado ali nas docas. Teseu consentiu e, para a sua surpresa, quando o jovem abriu as portas, viu uma réplica perfeita do seu navio. Então, o admirador lhe disse orgulhoso que aquele era o seu verdadeiro navio, o original, pois fora construído com todas as mínimas partes que haviam sido descartadas. Ou seja, restaurado e reconstituído ali, naquele galpão escuro e empoeirado, estava o navio primeiro, que havia saído do porto muitos anos antes.
Depois de ouvir com atenção, o velho Teseu deu uma enorme gargalhada, e afirmou categoricamente que aquele era, no máximo, um fóssil bem preservado de seu navio antigo, porque as histórias de suas aventuras continuaram se desenrolando muito depois de cada uma daquelas tábuas ser substituída. O velho guerreiro balançou a cabeça a concluiu, “O meu navio jamais se deixaria capturar pelos paradoxos de um rico e sedentário colecionador”.
Entretanto, depois de dizer isso, o próprio Teseu petrificou-se, pois já não sabia mais dizer quem era que tinha mudado mais, o navio ou ele. Sua história seria eternamente sua, mas percebeu que a sua vida sempre fluia pela fresta de cada tábua trocada, sua existência vazava pelas fissuras de cada novo rumo que encontrava. Em suma, é impossível capturar um rio e colocá-lo num museu empoeirado, da mesma forma que é impossível saber onde suas águas encontrarão finalmente o mar.
Referências
- Sidarta – Herman Hesse
- A Evolução Criadora – Henri Bergson
- Matéria em Movimento – Regina Schopke
- Existência e Transitoriedade – Marco Casanova
- O Paradoxo do Navio de Teseu – Ciência todo dia