Skip to main content
CarrinhoClose Cart

Às vezes parece que estamos aprisionados em nossas tristezas. Levados pelo luto, tomados pela perda, perseguidos pela falha, acabamos trancados dentro de nossas próprias cabeças: a vida traz suas novidades, como não pode deixar de ser, só que elas não nos despertam, ao contrário, se embaraçam em um doloroso emaranhado que faz tudo piorar. Cada signo se engancha em uma dor, tomando seu lugar em uma longa cadeia de significados já dados. É como se nada de bom estivesse à altura do que foi. Mesmo neste estado, percebemos que as alegrias continuam lá – nossos interesses, prazeres e amizades -, o problema é que nós não estamos. E assim vamos levando, um dia após o outro, a vida desbotada que nos coube.

Motivos para a tristeza não costumam faltar, mas há momentos em que eles se empilham de tal maneira que fica difícil enxergar outra coisa. A depressão é um estado no qual a nossa condição de fruição das alegrias se encontra reduzida. Uma grande soma de tristezas não é apenas uma alteração quantitativa de nossas capacidades, a própria qualidade dos afetos é modificada, como uma contaminação. Em outras palavras, não se trata de uma simples indisposição geral, mas de uma sensibilidade embotada, de uma impossibilidade de acessar as alegrias mais elementares. Coisas tão majestosas quanto o sol e tão misteriosas quanto a lua, não nos dizem nada. A paisagem começa e acaba no interior.

Não sabemos quanto tempo pode durar – se serão dias, semanas, meses ou anos – e essa é mais uma dificuldade com a qual convivemos assustados. Conforme se prolonga o estado, somos cada vez mais assaltados pela ideia de que aquilo nunca vai passar. Pior do que estar preso é não saber qual foi o tempo da condenação. Não nos sentimos dispostos para lidar com nada e, ainda assim, parece que cada vez mais nos é exigido. De tanto ser contrariados, temos medo de criar qualquer expectativa, afinal a verdade é que sempre pode piorar. Infelizmente, determinadas condições nos levam a temer até mesmo a esperança. O que fazer quando não se sabe mais o que fazer? 

Ora, existe saúde em não saber. É claro que buscar ajuda profissional é importante, mas às vezes tudo o que podemos fazer por nós mesmos é deixar estar. Sim, aceitar que as tristezas têm uma razão de ser e que não fazemos ideia de como lidar com elas. Alguns afogamentos acontecem não porque a pessoa não sabe nadar, mas porque não aprendeu a boiar, simplesmente parar de se debater e habitar a superfície. A pressa em sair da melancolia é uma consequência natural do fato de que ninguém quer estar triste. Por mais inato que seja esse desejo, é preciso encontrar nele algum lugar para a tristeza, deixá-la vir para uma conversa e observá-la com calma enquanto tomam um café.  

Se existe algo importante na melancolia, é a possibilidade de suspender a ordem do dia. E talvez o que ela esteja pedindo seja justamente isso, um pouco de nada. Um momento de tristeza é uma pausa no desejo, e isso não é irrelevante: a linha pontilhada que seguíamos desapareceu e agora não resta muito mais a fazer senão esperar. Nesse desligar das máquinas, podemos ao menos contar com o silêncio. O tempo passa, nos habituamos com a quietude, nossos ouvidos vão aguçando e, pouco a pouco, começam a surgir melodias distantes – a vida insiste. Em si mesmas, as tristezas não apontam saídas, mas as alegrias sempre espreitam, querendo nascer. 

A pressa em voltar para os eixos pode nos impedir de perceber que estamos o tempo todo nascendo. Aliás, nascer é um verbo que merece ser mais conjugado no gerúndio. Mais do que ser, somos algo sendo, por meio de atividade incessante de renovação. A repetição é uma estrutura que inventamos para sobreviver, basta abrir bem os olhos para ver: os detalhes são sempre novos, e nos detalhes mora a diferença. Na pequena coisa que se destaca, há uma nota fundamental que, se perseguida, pode ser o caminho para uma grande sinfonia. Nunca há como saber se será realmente o caso, mas não seria esse um motivo a mais para experimentar?

A vida é tão múltipla que espalha infinitas riquezas pelos cantos, como portas para novos mundos. As pessoas se encantam todos os dias pelas mais variadas coisas – pigmentos extraídos de pedras, aberturas de xadrez, peixes abissais, maneiras de amarrar sem machucar, o equilíbrio difícil do corpo em uma prancha de madeira sobre as ondas, os primeiros passos de um bebê – e retiram delas o sentido de viver. Deveríamos perguntar a cada uma delas: como começou?  

Inventar um caminho para fora da depressão não é fácil. Além disso, não é um processo linear. Um dia nem sempre é melhor que o outro. Ainda que a beleza num momento tenha recuperado alguma cor, no outro ela pode voltar à palidez. Quanto mais presentes são as tristezas, mais frequentes e intensas são essas oscilações. A inconstância é um outro nome para a tristeza. Saber disso nos ajuda a lidar com o desespero que retorna cada vez que voltamos a perder as alegrias de vista. Nessas horas, não há muito mais a fazer do que seguir adiante, confiando tanto quanto possível no amanhã.

Amanhã é uma palavra misteriosa. Ela guarda esperança e medo em seis letras. O que muda o jogo a nosso favor, porém, é o fato de que só estamos vivos graças à alegria. A vida é uma grande manifestação da graça de haver alguma coisa em vez de nada – e nós estamos aqui, rodeados de alegrias potenciais. Conforme a melancolia dá trégua, começamos a perceber alguns de seus lampejos, são índices de alegria, como uma trilha de vagalumes no meio da noite. Se há um lugar onde procurar a beleza, é justamente ali onde parece não haver nada: uma nuvem esculpida pelo vento, uma brisa leve a acariciar o rosto, o roçar dos gatos nas pernas, a partilha do choro entre amigos, enfim, coisas tão banais quanto os primeiros passos de um bebê. 

 


Referências 

Ética, Espinosa
Janet Planet, Annie Baker
As I Was Moving Ahead, Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty, Jonas Mekas


Como citar

LAURO, Rafael. Alegrias Nascentes. Razão Inadequada, 2024. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2025/27/01/alegrias-nascentes>. Acesso em: [inserir dia, mês e ano].
Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

Mais textos de Rafael Lauro
Subscribe
Notify of
guest
2 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments
Lívia
Lívia
12 dias atrás

Obrigada por essas palavras! Vieram em boa hora para mim.
A vida é imensa
<3