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De todas as máquinas inventadas, o carro deve ser a mais estúpida. Nunca tolerei muito bem sua existência. Imagine que você precisa levar 100 quilos de um lugar para o outro: quando é que te ocorreria a ideia de adicionar uma tonelada de lata sob quatro rodas movidas à combustão para então completar a tarefa? Absurdo, mas recorremos todos os dias a essa solução em nossas carruagens platinadas. É tão admirável a nossa engenhosidade para calcular explosões, quanto é ridículo nosso senso de eficiência. E o detalhe mais hilário ainda está por vir – além do carro gastar mais energia para mover ele mesmo do que aquilo que leva, ele faz isso lançando gases que estão nos defumando vivos. 

É uma catástrofe tragicômica. A história da metrópole é uma estrada de mão única, não há no horizonte nenhum sinal de que nossa consciência sobre o uso de automóveis vá mudar. Por esse motivo, o mais razoável é reduzir danos: se cada carro levasse ao menos 4 pessoas, reduziríamos o trânsito, a emissão de carbono, enfim, faríamos um uso mais inteligente da mecânica burra – aliás, perdoem-me os burrinhos, que insulto é o carro frente ao seu charmoso zurro! Lembram-se de quando os aplicativos de carona surgiram com a promessa de uma vida mais comunitária? (risos). Os carros venceram, o que mais nos resta agora senão passar pano na lataria de quem compartilha seu espaço condicionado entre vidros com os outros? 

Malditos automóveis. Dito isso, preciso admitir que tem uma coisa que amo neles. É uma peculiaridade minha, um tanto difícil de explicar, uma singela demência talvez, mas vamos lá: dentro do carro, nós estamos parados, mas as coisas passeiam pela janela. Vocês provavelmente já sentiram o embalo calmante desse mover-se parado, que nina as crianças no banco de trás. Mas há ainda algo mais, se você parar para reparar, quando a luz é propícia, o reflexo do seu rosto se projeta no vidro sobre tudo o que passa. Esse é o motivo que me faz gostar tanto de filmes com cenas de pessoas dirigindo pra lá e pra cá, com as expressões arvorejadas pela estrada. Me encanta especialmente essa projeção do mundo sobre o olhar.  

Se você regular o foco para o vidro, encontrará, bem ali, no meio do cenário transeunte, os seus próprios olhos, translúcidos, a devolver seu semblante misturado com a paisagem. No mundo disfuncional em que às vezes coloco a cabeça, o carro é uma sala de cinema na qual a tela é você. Melhor dizendo, o vidro é a tela, mas você é parte dela, uma parte que olha de volta. Reflexo não é coisa simples, nem ideia para pensar com pressa. Existem reflexões opacas, como espelhos, e transparentes como vidros; existem reflexos de coisas, e também de coisas que somos nós – aliás, o reflexo somos nós? As palavras, que não são as coisas, são os reflexos delas. E os pensamentos que aprenderam o reflexo para tomar-se nas mãos?

Existe alguma coisa nessa solidão do automóvel, nessa melancolia do tráfego, que convida à reflexão. Mas o que é refletir? É algo como olhar-se nos olhos – essa fórmula, porém, é muito estranha, tão paradoxal quanto o mover-se parado. Nós nunca poderíamos olhar a nós mesmos sem o truque de uma superfície, da mesma maneira como não poderíamos sentir a pele se não tocássemos em nada. Em outras palavras, o olho não pode olhar para si, mas pelo apelo ao reflexo, ele consegue se ver. A questão é que aquilo que responde do lado de lá não se reconhece perfeitamente naquilo que pergunta do lado de cá. Esta é a maravilha da janela como tela, ela eleva a diferença entre os dois, exacerba o fato da dissemelhança em algo que não deixa de ser parecido. Nessa contradição há um bom lugar para sentar, a vista é bonita.

O reflexo é a projeção de um corpo no outro, ou seja, o resultado é sempre uma mistura. Uma tela branca finge que não existe, para que você se concentre apenas na imagem projetada. Se é um espelho, você se vê com algumas distorções, mas consegue arrumar o cabelo. Neste texto, porém, estou divagando no elogio da tela translúcida, que faz interface entre dois campos de imagem, abolindo as distâncias entre o eu e o mundo.  É claro que você não precisa de um carro para tanto, perturbar um espelho d’água em círculos concêntricos enquanto observa seu rosto ondular também serve, e por que não modular as ideias com as bolhas lentas de um aquário? 

A escrita é também uma maneira de olhar-se nos olhos, demoradamente. Nesse caso, a palavra é a superfície que nos espelha. O que é interessante é que elas também são cristalinas, e devolvem um rosto, mas não sem inserir junto dele os significados do mundo. Talvez seja esse o motivo que faz ser tão difícil escolher as palavras certas na hora de escrever: não se trata de um simples processo de encontrar os termos prontos, mas de fabricar o sentido, tentando enxergar os próprios olhos na sua rede de significados. O que fazemos ao escrever é tentar vencer a linguagem, mas sem ir contra ela. Essa é a luta gentil que me interessa, pois as letras que combino com cautela são reflexos que projeto sobre minha própria face – escrevo porque quero margear minha própria imagem.

Que máquina elegante é a escrita, enquanto processo de transformar a matéria bruta da palavra já pronta em fala própria e linguagem íntima. E o que é mais bonito é que, ao tomar as frases para si, você as entrega para os outros. A associação livre de onde partiu este texto poderia ter ficado no divã da minha analista, mas eu trouxe para cá, para contá-la a vocês. Eu estava parado no trânsito quando vi meus olhos refletidos no vidro do carro e através deles vi a cidade se mover. Abri o caderno onde guardo as faíscas e anotei: “olhar-se nos olhos”, sem saber bem o que faria com isso. Eu sabia apenas qual era a máquina que eu usaria para fazer o trabalho.


Referências 

Estética e Criação Verbal, Bakhtin
A Hora da Estrela, Clarice Lispector
Fenomenologia do Espírito, Hegel
Os Ensaios, Montaigne
Drive My Car,  Ryūsuke Hamaguchi

 

Como citar

LAURO, Rafael. Olhar-se nos olhos. Razão Inadequada, 2024. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2025/24/02/olhar-se-nos-olhos>. Acesso em: [inserir dia, mês e ano].
Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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