Antes, as trevas cobriam a face do abismo, o mundo era opaco, sem céu e sem terra, sem vida nem morte, sem sujeito nem objeto. Por muito tempo foi assim, até que surgiu a palavra e cortou o universo com uma navalha. Desta separação surgiram os primeiros objetos, o mundo foi seccionado e ganhou contornos. Desta separação vieram os limites e as silhuetas. O abismo, acuado, recuou, e a realidade foi coberta pelo véu sonoro das definições. As palavras se espalharam por todas as partes do universo e o Caos tornou-se Cosmos, sendo possível encontrar em seus extremos o céu e o inferno.
O que era o mundo antes da linguagem? É difícil dizer, talvez ele fosse como um poço escuro, onde a matéria caótica trombava consigo mesma num frenesi ardente. A terra girava em torno do sol antes das palavras terra, girar e sol? Não sejamos ingênuos, o objeto existe para além do sujeito, afinal, as palavras não são a realidade, nem o seu avesso, elas são um complemento do mundo. Mas não deixa de ser estranho imaginar um sol que ilumina sem olhos para ver, ou uma árvore que cai sem ninguém para ouvir.
O Universo não precisa das palavras, mas para nós elas são andaimes sobre os quais construímos o nosso mundo. Ou seja, através da linguagem nos tornamos capazes de descrever a realidade ao nosso redor, as palavras dão contorno ao mistério que habita incólume para além de qualquer descrição. Sendo assim, a linguagem define o limite da nossa realidade. E através dela o mundo ganha sentido.
Gostamos de pensar que através das palavras adquirimos controle sobre o universo, até que este venha frustrar nossas expectativas. Quando vamos ao médico, um cardiologista, por exemplo, é comum ele se utilizar de termos desconhecidos: miocárdio, angioplastia, entre outras. É um mistério, o que isso quer dizer? Ele conclui: coma menos carne vermelha e faça mais exercícios. Estas situações ferem nosso orgulho, é humilhante deixar-se definir pelas palavras de um estranho. Quem ele pensa que é? Um desconhecido não pode saber melhor do funcionamento do nosso coração do que nós mesmos. Ora, isso acontece porque a linguagem é um fenômeno compartilhado. Cada um tem o seu próprio mundo, claro, mas este mundo é comunicável com os outros. Tudo vai bem, até as artérias entupidas do nosso coração encontrarem as palavras que o médico aprendeu na faculdade. Comunicar é ter a chance de criar novas relações, realizando uma ligação entre a parte e o todo.
As palavras são andaimes, e alguns chegaram mais alto em determinados assuntos. O fato de vivermos a própria vida não significa que somos capazes de descrever o que estamos vivendo. E é preciso cuidado, porque neste longo caminho, de aprender a colocar em palavras, as armadilhas são constantes. É comum alguém achar que tem as descrições perfeitas para dizer o que estamos passando. Este mesmo médico, que sabe o nome de todos os músculos do coração, é capaz de se empolgar e começar a dar conselhos amorosos para seus pacientes com coração partido. Neste momento, o substantivo médico se une ao adjetivo inconveniente, e começa a atirar verbos para onde não devia. Algumas definições não podem ser dadas, precisam ser conquistadas, com muita dificuldade.
É este o trabalho de um psicólogo. Alguns imaginam que ele sabe de algum segredo que ignoramos, mas isso poucas vezes é verdade, existe uma definição melhor: o psicólogo sabe que o paciente sabe de algo que não consegue colocar em palavras, ainda. É como se ele esperasse do outro lado de uma ponte que precisa ser construída. Um psicólogo clínico trabalha a maior parte do tempo com a palavra, esta é a sua matéria prima. Sua arte de escutar está na capacidade de compreender como um paciente vê a si mesmo e o mundo. O que significa alegria para ele? O que significa mãe? Quais palavras ele usa para falar do seu trabalho? O psicólogo também tem a sensibilidade de perceber que este mundo no qual o paciente vive é reduzido, precisa de mais espaço, precisa expandir-se, e isto acontece criando novos sentidos através da palavra.
O trabalho de um bom psicólogo não é impor o seu sentido de mundo ao outro, muito menos um sentido comum, normal. Não se trabalha neste campo apenas com bom senso. Aqui é preciso encarar um mal entendido constante, comunicar não significa tornar comum. Neste sentido um psicólogo raramente quer comunicar algo, ele se esforça para encontrar a maneira através da qual aquela subjetividade se relaciona com o mundo, como aquela singularidade se abre para o mundo, e muitas vezes o paciente ainda não sabe dizer isso. Na terapia, o psicólogo mergulha no mundo de uma outra pessoa, intui como é ser o que ela é, tenta pensar e sentir como esta pessoa. Afinal, qual é o mundo em que ela vive? Quais os caminhos subjetivos que percorre diariamente?
Claro que a palavra possui suas limitações, afinal, a fala e a escrita não são onipotentes. Este lembrete é bem vindo, porque mostra que existem outras formas de explorar o que se passa dentro de nós. A pintura e a música instrumental sabem muito bem disso. Às vezes, uma tristeza só encontra seu caminho ao deparar-se com um dó menor da orquestra ou um azul petróleo do quadro. Não podemos esquecer que o mundo vem primeiro, as palavras são andaimes. Os sentimentos nascem antes da capacidade de expressá-los. E a palavra é um destes recursos, tão importante quanto o pincel e a palheta.
Ora, mas pra quê esta insistência na linguagem? A pergunta pode ser invertida, por que deveríamos desistir deste instrumento verdadeiramente mágico? É de enorme importância a capacidade de expressar-se através da linguagem. Claro, o caminho é longo, cheio de desvios, mas é tão belo quando alguém encontra a sua gramática pessoal, sua própria maneira de pensar, de agir, de falar, de viver. Através das palavras uma pessoa se torna capaz de aproximar vida e pensamento. E isto não só é possível, como é lindo de se conquistar.
Um amigo de infância adorava usar a palavra inefável, sempre em circunstâncias duvidosas, dando ares elegantes aos acontecimentos. “É inefável” ele falava cheio de satisfação, sem saber que mesmo o maior dos enigmas cabe dentro desta palavra. Sem perceber, ele vestia o mistério de existir com um roupa bem larga, deixando de ver a silhueta do objeto cujo pano escondia. Mesmo assim, neste gesto inocente, ele capturava parte do movimento vertiginoso da realidade em uma palavras de oito letras. Era um belo primeiro passo, uma armadilha gentil, por assim dizer, jogar um tecido bem bonito em cima do mistério, e aos poucos, como um bom alfaiate, dar a ele um corte perfeito, vestindo o mistério de viver com elegância gramatical.
Referências
- Crítica da Razão Pura – Kant
- §354 – Gaia Ciência – Nietzsche
- Learning RFT – Niklas Torneke
- Clínica Freudiana – Bruce Fink
- O Segundo Sexo – Simone de Beauvoir
- Pele Negra, Máscaras Brancas – Frantz Fanon
O sonho de uma criança. Este é o objetivo!