A pergunta que segue talvez soe mal. O que a astrologia, o tarot, a numerologia, a benção, a reza, o banho de ervas, a alquimia, os cristais têm em comum? A grosseria da pergunta está, claro, na aproximação forçada entre práticas místicas muito diferentes. Encontrar semelhanças, porém, não é necessariamente uma maneira de colocar tudo num saco só para depois jogar fora. A filosofia e a ciência muitas vezes fazem isso, chamando todo o sobrenatural de superstição. Aqui, no entanto, experimentaremos outro caminho: como podemos, sem abdicar totalmente da razão, fazer o elogio do que a escapa?
O ceticismo foi apropriado pela ciência moderna, mas muito séculos antes dela era uma prática filosófica. Mais do que uma doutrina, os céticos eram inquiridores que argumentavam para mostrar a insuficiência dos argumentos, e assim suspender o juízo. Se a balança da razão pesava demais para um lado, eles faziam peso no outro prato, tentando ao máximo fazê-la retornar ao equilíbrio. Assim, combatiam a certeza cega que funda todo dogmatismo. Entre os helênicos, o ceticismo era uma espécie de remédio contra a presunção que levava as pessoas ao julgamento precipitado.
É verdade que Sexto Empírico – o cético do século II d.C., a quem devemos a maior parte dos escritos sobre o tema – escreveu contra os astrólogos. Mas escreveu também contra os gramáticos, os retóricos, os aritméticos, os músicos, os lógicos, os físicos e os éticos. Acima de tudo, o cético é aquele que nunca se satisfaz com uma verdade, e permanece em investigação, pois acredita que, quanto maior a disposição em duvidar, menor a chance de sermos tomados de angústia por causa da incerteza. É justamente porque sabe que não se pode ter certeza de nada que o cético transforma a incerteza em método, apaziguando assim o sofrimento causado pelo desejo de verdade.
Talvez o ceticismo nos ajude a reaver o que há de saudável no que hoje se considera irracional. Afinal, o inexplicável certamente tem um lugar. É irritante a soberba racionalista que insiste em expulsar das coisas a sua parte ilógica. A tentativa de traduzir o mundo em números não deixa de ser uma forma de colonizá-lo. O aparelho racional obriga o universo a falar sua língua, estabelece funções, descobre determinações, resolve problemas, mas ao se colocar como pensamento único parece perder a força que a boa crença traz. A hegemonia da razão é tão perigosa quanto o império da superstição.
É ingênuo pensar que apenas aquilo que compreendemos pode nos movimentar. Claro que o entendimento é fundamental para a ação, mas será que é sempre suficiente? A crença não ocupa um papel secundário no pensamento, ela anda lado a lado com a razão, ainda que esta às vezes precise desafiá-la para compreender melhor. Aliás, a racionalidade, antes de chegar em qualquer conclusão, é imaginativa, uma capacidade louca de fazer hipóteses, que às vezes acerta por acaso. Isso talvez mostre o quão arbitrária é a separação das faculdades entre crer, imaginar e deduzir – estes fios se enrolam uns nos outros quando pensamos, e é sua trama complexa a verdadeira responsável pelas nossas ações.
O conhecimento não é feito apenas de razão. O que nos leva a agir é um misto de sensações, imagens e ideias, provindas dos mais diversos lugares. Há momentos em que o raciocínio mais acertado não é suficiente para a mudança. Às vezes a racionalidade se esgota sem nos tirar do lugar. Então, de repente, forças misteriosas nos atingem: um sonho louco, uma frase enigmática, um presságio inexplicável, um gesto místico. Parece que o mistério valoriza o indeterminado e, nesse sentido, ele pode ter uma função libertadora, pois dá passagem para um regime de forças inacessíveis à razão. Não seria triste ensurdecer para as vozes que o vento carrega?
Existe saúde em dar corpo ao inaudito. O perigo não está no ilógico, mas no poder interpretativo de quem faz a mediação. Infelizmente, o uso dessas forças ocultas é muitas vezes orientado pelo lucro: é o caso de muitos pastores evangélicos, especialmente os neopentecostais. Sempre que o intermediário se coloca como autoridade, ele transforma o mistério em instrumento de poder, operacionalizando a crença como manipulação. Como deixar de suspeitar de alguém que tem tanta certeza justamente no campo em que nos entregamos ao mistério? É algo que deveria configurar abuso de vulnerável.
A abertura para o oculto está longe de ser o problema, ao contrário, é uma disposição corajosa se deixar movimentar pelo que não compreende. Não é fácil abrir mão do controle, ainda que, em última análise, ele seja uma ilusão. Receber um passe é não saber exatamente o que é que foi passado, e ainda assim acreditar que aquilo merece um lugar; ouvir um conselho oracular é não entender a metade, mas sair com a missão de examinar em que sentido o que foi dito pode se tornar verdade. Ou seja, o misticismo é uma disposição em levar a sério as diferentes forças que nos constituem e que pedem passagem. Analisar um sonho não é muito diferente: é dar lugar para a loucura.
O que é interessante na ideia de oculto é a pressuposição de que a força já está lá, esperando o momento certo para vir. Isso significa que não é qualquer frase mirabolante ou imagem estranha que é capaz de nos deslocar, mas apenas aquela que desperta a sensibilidade – ou seria melhor dizer sensitividade? Muitas coisas misteriosas são ditas, mas só algumas delas realmente nos sacodem. Nós ouvimos especialmente aquilo que ressoa com todo o nosso existir. Sendo assim, a mística é um radar de sentimentos fortes, que aguardam sua vez, porque precisam de outros encaminhamentos para vir a ser.
As diferentes práticas místicas se aproximam na suspensão das regras convencionais da razão, da linguagem, da sociabilidade – para então causar uma catarse: os atabaques te convidam, as vestes te despem, os cantos te calam, as entidades te envolvem, e você já não pode ser o mesmo. A beleza empresta sua força para o rito da transformação. O que é belo não pede razão de o ser, apenas se mostra: com uma mão de majestosa força nos faz duvidar de tudo; com a outra nos instiga à verdade. Neste sentido, a arte e a mística se avizinham, porque nos excitam à ação a partir da beleza. A poesia e o feitiço são formas semelhantes de encantar a palavra.
A balança, símbolo maior do espírito investigativo, quer ao mesmo tempo ser perturbada e retornar ao equilíbrio, pois sabe que nesse movimento engrandece. Já a beleza tem permissão para torcer qualquer regra, desequilibrar qualquer prato, mas não tem grande força sem um ritual, sem responder ao seu próprio rigor. Dois opostos complementares, portanto: a suspeita, derivada da impossibilidade de verdade última; e a crença, resultado da inquestionável beleza afirmada. Ética e estética se encontram numa dança mística, que abre caminhos.
Referências
Cléo das 5 às 7, Agnès Varda
Sexto Empírico, Contra os Matemáticos
Assim Falou Zaratustra, Nietzsche
Mitologia dos Orixás, Reginaldo Prandi
Cavalo bravo não se amansa, Teatro Ebó
Mineirinho, Clarice Lispector
Adorei ♡ Tenho conversado sobre isso esses dias! Coincidência 🙂
<3
olha só!