Sim, a vida me desiludiu, e a cada ano que passa eu sinto este sentimento crescer e engolir cada parte do meu ser. Tento me defender, racionalizo, nego, é uma luta diária, mas é perceptível a vitória que o horror de viver tem sobre mim. Dia após dia, comendo pelas beiradas, aos poucos a desilusão conquista mais espaço, como um câncer que se espalha lentamente sem chance de cura. Me vejo coagido a renunciar à minha infância e forçado à maturidade, enterro meus sonhos e percorro caminhos por onde o perigo espreita. A passagem para a vida adulta se faz através desta lenta abdicação. Enquanto sigo pela estrada da vida, vejo os edifícios da infância ficarem menores, e me angustio, tento gritar, mas o som não sai, tento voltar, mas é tarde demais.
Sim, a vida me desiludiu até mesmo quando menos esperava, pois a experiência de conhecer foi uma das maiores decepções. Suas promessas foram grandes – e são até hoje. Uma vida repleta de conhecimento garantiria uma vida com menos dores. Uma espécie de sabedoria prática que daria conta dos problemas diários, ou ao menos uma espécie de letargia apartada da dureza da realidade. Doce ilusão. Hoje confesso que saber às vezes me parece uma maldição pior. A bênção de uma visão mais curta me impediria de olhar o que acontece para além dos muros do imediato.
O que quero dizer é que há saberes que dilaceram a alma, e para quê? Os urros de medo e dor de Canudos, do Quilombo dos Palmares, dos torturados nos porões da ditadura. Isso para ficar apenas no Brasil. O que dizer dos genocídios perpetrados no Congo, Faixa de Gaza, China, Alemanha. E como ignorar os massacres não televisionados? A vida às vezes parece um pesadelo que se sonha junto, mas estamos acordados e não há para onde fugir. De Gengis Kahn a Benjamin Netanyahu, do Camboja às favelas do Brasil, existem coisas que eu gostaria de poder desver. Meu último refúgio, o campo abstrato do pensamento, foi invadido, e pouco me restou.
Não é possível ignorar toda a dor da existência, mas também não parece possível enfrentá-la. O jogo da vida é injusto e os dados estão viciados. As vitórias são poucas e esparsas. Quem canta, hoje, canta de dor, quem dança, dança para esquecer, nossos jogos são distrações da miséria revelada. A vida me trapaceou a tal ponto que destruiu até mesmo os planos que não fiz. Me impediu de sonhar para além da urgência da realidade. Me prometeu pouco e exigiu mais do que eu podia dar. E mesmo quando pedi, implorei, em momentos de desespero, fiquei sem. Hoje, a crueza do destino humano me parece esmagadora.
A prova de que estamos vivendo um pesadelo é a naturalização do absurdo da existência. Prova disso é como a palavra fraternidade se tornou praticamente proibida. O poder se impõe sobre toda diferença, todo desvio. A cor da pele justifica um tiro nas costas, o negro é diariamente submetido a uma realidade de guerra enquanto o branco sobe a passos largos os degraus do poder. O homem submete a mulher às mais degradantes opressões enquanto sua voz é ignorada nos tribunais. Penso também na brutal diferença entre ricos e pobres. Na convivência servil e humilhada dos que não têm nada se submetendo aos caprichos daqueles que estão convencidos de sua posição de superioridade. A estrutura consolidada beira a insanidade, mas é mantida intacta por gerações e gerações, talvez por cansaço ou medo. Todos mergulhados no mais absoluto torpor, incapazes de tomar uma atitude.
Este é, aliás, o golpe final na minha esperança, onde tudo perde a sua razão de ser: a facilidade com que destruímos nosso próprio planeta, nosso único habitat, sem olhar para trás nem por um momento. Tenho horror do futuro reservado aos herdeiros deste mundo em chamas. A destruição irreversível prova que somos tão irracionais quanto insaciáveis. Parece que cheguei no fim da festa, é tarde demais, não há o que fazer além de comer as sobras enquanto observo os ratos abandonarem o navio. Condenados a voltar de onde viemos, o deserto cresce, inclemente, devorando tudo. O Sol fustiga a paisagem, logo, não restará pedra sobre pedra, e saídos do pó, retornaremos à fuligem.
Mas eu ainda vivo, eu ainda penso, ainda tenho de pensar pois ainda não parei de viver. Se hoje, cada um se atreve a dizer o que pensa, e posta sua opinião para sua base pessoal de fãs, então também eu quero dizer qual é o meu mais profundo desejo. Quero gritar meus pensamentos através destas palavras escritas, para quem sabe talvez não esquecer do que estou sentindo.
Quero cada vez mais aprender a não virar os olhos para o que há de horrível nas coisas! Talvez assim eu me torne um daqueles que aprendem a lidar com tudo isso! Horror fati, seja esta doravante a minha sina. Aprender a fazer guerra ao que é feio, responsabilizar a tudo e todos, até a mim mesmo. Uma delação absoluta, livre de ressentimento e má consciência. Uma denúncia destinada a romper o sólido céu cinza com um raio de luz, como um holofote que recai na fonte do problema e revela o absurdo que se tornou viver.
Que minha última negação seja sustentar o olhar sobre meus algozes, aqueles que enterraram meus sonhos em covas rasas. No instante final, quero estar consciente de minha raiva enquanto caio nesse abismo profundo. Eu, que tenho aversão à violência, quero explodir tudo pelos ares, porque o mundo me condenou a ser muito menos do que poderia ser. Em suma, apenas hoje, quero ser alguém que diz Não! Gritar a plenos pulmões que não é possível, não dá mais pra ser assim! Se não sei o que será do futuro, pois não me iludo mais, que ao menos ele guarde a lembrança deste protesto que consome todo o íntimo do meu ser.
essa molecada é fogo