É uma coisa bonita que eu vou te contar agora. Se aconchegue direitinho aí, menino, deite a cabeça e escute com atenção. Prometo que você vai gostar, senão te conto outra. Mas essa é das boas. Minha mãe me contou antes de antes de antes de ontem, ou antes do ontem, não sei bem, mas parece que foi outro dia. Eu estava cansada de contar carneirinhos, então convenci ela com choramingos. Ela se sentou ao lado da cama e, enquanto acariciava meus cabelos bem devagarinho, desse jeito que agora eu faço com você, me contou assim…
Nina era uma menina esperta. Aprendeu a desenhar antes de andar e, antes de aprender a andar, já sabia olhar as coisas do jeito dela. Abria um sorriso largo toda vez que lhe davam nas mãos um daqueles livros que trazem surpresas dobradas. Ela virava a página, concentrada, para descobrir qual seria a figura que iria desabrochar em papelão: um passarinho cantor, um elefante equilibrista, uma baleia cozinheira, e sabe-se lá mais o quê. Com os olhinhos pasmos, Nina apontava e soltava um gritinho: oh! E todo mundo em volta dela caía na gargalhada.
A menina Nina passou a vida de bebê assim, rodeada de livros mágicos. Ela tinha uma coleção deles. Certo dia ela se assustou com um, que vinha todo em preto e branco, das abelhas só se via o contorno. Então foi perguntar pra vó onde tinha ido parar o amarelo. E a vó falou: “procura o amarelo na gaveta da escrivaninha”. Nina foi correndo, abriu a gaveta e encontrou, no meio das traquitanas que a vó guardava pra si, uma caixa de lápis coloridos. Então, colocar a cor nas coisas se tornou sua brincadeira favorita. Ela passava as tardes pensando se uma abelha precisava mesmo ser amarela. Quase sempre decidia que não, e corria para mostrar à vó que a gente sempre pode colocar a cor que quer. Vovó ria e repetia: “é sabida essa menina”.
Então com uns quatro aninhos, a menina percebeu que os livros do irmão eram diferentes. Eles traziam um desenho aqui outro ali, mas entre eles havia um monte de rabiscos enfileirados como formigas bailarinas. Elas dançavam pra lá e pra cá no papel até que, ponto! – espaço vazio. Onde será que estavam indo? Foi perguntar a João, seu irmão, que plano tinham as pequeninas. João, que adorava pregar peças, disse à menina que as formigas guardavam um segredo e que só quem sabia imitar os passos daquela dança é que podia entender. Ele se divertiu por semanas vendo a irmã-lombriga rastejar pela casa em formato de S.
Algum tempo depois, Nina foi para a escola, e a professora lhe disse que seu irmão era muito levado, mas ficou impressionada com o fato de que a menina já trazia no corpo todas as letras. Então, começou logo a explicar que cada uma daquelas poses era para ser feita também com a boca: “este triângulo diz aaaaa”. Então, Nina entendeu o segredo que seu irmão tinha lhe prometido, na verdade eram formigas cantoras! Naquela tarde, desenhou um cortejo de insetos coloridos a cantar sílabas e consoantes por entre as ruas de papel. Mostrou o seu carnaval alfabético ao irmão, que pensou: “essa menina é maluca”.
Foi de mistério em mistério que Nina aprendeu a ler. Quando completou sete anos, ganhou um livro de Gabi, a amiga com quem voltava na perua da escola e dividia o prazer de descobrir os segredos escritos nas placas. Ao receber o presente, Nina ficou tão contente que jurou que não leria nenhuma das páginas sozinha. Então, levava o livro para escola todos os dias para que, na volta pra casa, elas pudessem decifrar juntas as palavras que ele trazia. Com o livro aberto, dividido sobre o colo, elas liam em voz alta, uma página por dia. Às vezes era difícil conter a empolgação de espiar o que traziam as próximas, mas elas gostavam de sentir que ainda tinha mais para o dia seguinte. Numa destas tardes, as amigas, de mãos dadas, passaram o caminho todo extasiadas, porque tinham descoberto no livro o jeito perfeito de colocar em palavras aquilo que sentiam, era assim: felicidade é um agora que não tem pressa nenhuma1.
Um dia, Nina percebeu que as palavras mexiam com ela, mais ou menos como as cores, e foi assim que começou a escrever, para colorir seu próprio mundo. Ela tentou manter um diário, mas achava muito estranho escrever apenas para si mesma. Então inventou um amigo, para quem escrevia cartas e mais cartas, todos os dias. Chamou ele de Tertúlio, porque era um nome com gosto de flor. Contava a ele tudo o que acontecia em sua vida: o dia em que viu a língua de um destro sapo agarrar uma pobre mosca; sobre quando sua priminha foi inventada com o nome de Rosa; a vez em que irmão João lhe explicou que palavrões não eram apenas palavras cumpridas; e também o dia em que o vovô virou cinzas e se transformou em árvore. Contar era um jeito que a menina dava para o viver, e Tertúlio era muito interessado, fazia perguntas muito divertidas, como: “qual a diferença entre balançar e remexer?”.
Os anos passaram, a pequena Nina cresceu, e crescendo percebeu que no mundo dos crescidos as palavras são paredes, que gente grande perde a vontade de brincar de ler e escrever. Ela continuava rodeada de livros, mas já não sentia a empolgação de antes, porque tudo o que lia ficava apenas na sua própria cabeça. Ler tinha se tornado um hábito solitário, feito em silêncio, como forma de preparação sei lá pra quê. Ainda se encantava com os universos que as palavras inventavam, mas elas pareciam estar presas dentro dos livros, que saíam e voltavam pra estante sem mudar nada de lugar. A coisa mais encantadora que ela tinha descoberto quando criança agora era estudo, relatório, disciplina, no máximo um passatempo.
E o tempo passou mesmo, até que Nina ouviu do médico que um bebê estava juntando as primeiras sílabas dentro da sua barriga. De início, ela ficou apavorada, e depois continuou apavorada. Ela passava horas no caderninho escrevendo nomes e mais nomes para a criança porvir, era difícil aceitar que teria que escolher um nome sem a opinião da própria pessoa nomeada. Para reduzir os danos, decidiu por um nome duplo, Maria Luísa, assim a criança teria alguma oportunidade para escolher. Menino, você já deve ter adivinhado, e que estou te contando a história da minha mãe. Enfim, eu nasci, e mamãe percebeu que aquele era o momento perfeito para voltar a brincar de ler e escrever.
Foi assim que ela recuperou o prazer com os livros. Passava muito tempo inventando estórias, que então eram contadas com carinho para que eu dormisse. Muitos anos depois, eu já adulta, lembro de me sentar com ela, numa dessas tardes de preguiça e café. Ela abriu um livro de contos e leu um deles inteirinho para mim, era sobre o mistério de um coelho pensante2, outro dia eu leio pra você, é lindo. Importante mesmo foi o que ela me disse depois: “filha, se tem algo que eu aprendi com você, é que as palavras escritas não foram feitas para ficar no papel, que os livros, Maria Luisa, foram feitos para ser lidos a dois – ou mais!”. Agora eu te repito essas palavras, filho, para que você durma bem e se lembre que as alegrias mais bonitas são aquelas que experimentamos juntos.
1 Trecho do livro, Mania de explicação, de Adriana Falcão
2 Referência ao conto de Clarice Lispector
Referências
Mania de explicação, Adriana Falcão
O mistério do coelho pensante, Clarice Lispector
A virada, Stephen Greenblatt
Sem tempo a perder, Ursula K. Le Guin
Que lindo!!! ❤️❤️