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Somos indiscutivelmente sociais. O mais individualista dos homens pode pensar que se basta, mas não sobreviveria à sua própria companhia, caso fosse abandonado por completo em meio às pedras, areias, mares e ventos. Ainda que sobrevivesse ao isolamento, continuaria ele a afirmar sua escolha? Duvido. A aposta na individualidade ignora a comunidade que a sustenta, e só por meio dessa ignorância pode seguir afirmando sua independência. No entanto, continuamos um tanto ingênuos se acreditamos que as pessoas nos bastam. A relação com seres humanos é fundamental, mas insuficiente: existir junto dos bichos não é uma opção, é uma necessidade.

Há alguns meses, me mudei para um apartamento, onde agora moro sozinho, depois de ter  passado muitos anos compartilhando o espaço com outras pessoas, plantas e animais. Me habituei à casa cheia, mas me vi também precisando de espaço. A arte das distâncias é difícil de dominar: solidão e solitude são sinônimos que se confundem. Estou fazendo o que posso: espalhei uns vasos pelos cantos buscando companhia, converso com as maritacas que me visitam na janela do escritório, e me esforço sempre para trazer os amigos para dentro. Ainda assim, um sonho se repete algumas noites para me lembrar de uma parte insatisfeita de mim, um vazio para o qual preciso olhar. Embora haja variação, o tema é o mesmo: gatos.

Estou perdido, vagando por caminhos incertos, até que uma rua se estreita em beco. É quando ouço o frágil miado de um filhote. Procuro nas latas de lixo, embaixo dos carros, entre as moitas, e nada. O desespero cresce como um rodopio em minha volta, dirijo o olhar para todos os cantos, enquanto o miar fratura parte à parte a calma que me resta. Paro, respiro e penso: tem que estar aqui em algum lugar. Em algum lugar, repito enquanto escalo as árvores, rastejo os bueiros, vasculho os bolsos, reviro a bolsa, até que enfim suspeito de um repentino calor no meio do peito: aninhado sob minha blusa está uma pequena bola de pelos negros de onde brotam olhos felinos e amarelos que me observam com atenção. Não sei se sou eu que aconchega o pequeno ou é ele quem me aconchega. 

Geralmente acordo em lágrimas. Minha relação com os gatos não é de hoje. Passei pouco tempo da vida desacompanhado dos felinos, eles foram parte fundamental no meu aprendizado sobre relações. Com eles – e sua natureza silenciosa e honesta – me experimentei no difícil ofício de respeitar a autonomia do desejo alheio. Isso porque os gatos nada fazem contra à vontade. Há momentos em que o melhor que podemos fazer por eles é admirar sua beleza: nada de toques. Algumas pessoas preferem os cães, dada sua insaciável ânsia por interação. Gosto deles também. Gatos, porém, me seduzem flertando com os limites, tangenciando minhas pernas, até que eu os acaricie e eles digam não, é demais. Alguns até gostam que eu insista, mas não sempre.

Um gatinho muito pequeno pode quebrar a realeza imaginária de um homem. Tudo é imundo para a imaculada pata do gato, escreveu Pablo Neruda – incluindo, muitas vezes, você!, eu acrescentaria. O desprezo de alguns humanos pelos gatos vem de sua incapacidade de lidar com a rejeição. Ora, que petulante este bicho que eu alimento e não me retribui sempre que eu quero, que insiste em buscar seu próprio prazer a despeito de mim. Pessoas que pensam assim têm muito a aprender com os gatos sobre a diferença entre uma relação e um investimento: o amor é dispendioso; aos avarentos, o mais indicado é a bolsa de valores.

O gato é um animal difícil de domar, e isso é insuportável para os amantes da posse. Embora sejam considerados domésticos, eles não se circunscrevem aos limites do domo, isto é, da casa. Eles saem para explorar, desafiando os riscos da noite, depois de um belo dia de sol no telhado. E mesmo nos apartamentos, eles inventam os próprios lugares, a despeito de qualquer organização prévia. Os gatos são voluptuosos, estão sempre em busca do que pode lhes trazer satisfação, e não se preocupam tanto em agradar os outros para conseguir o que querem. Geniosos, é que se diz sobre eles; têm personalidade, é o que se percebe logo; gostam mais da casa que do dono, é o que exclamam aqueles que ainda não entenderam que gatos não têm donos.

A boa convivência com os felinos exige um modo singelo de comunicação. O silêncio dos gatos é eloquente aos que estão dispostos a ouvir. Embora o façam sem verbos, eles sabem dizer muito bem como estão e o que querem; assim como sabem perguntar, por meio de um longo olhar: como vai? Eles sabem observar. É espantoso como às vezes eles adivinham o que estamos sentindo, sendo bastante compreensivos e carinhosos quando estamos tristes. A bobagem de que os gatos gostam apenas de si mesmos não passa de preconceito de quem acha que para cuidar do outro é preciso deixar de cuidar de si. 

Na longa história dessa relação interespécies, temos atribuído aos gatos ideias de proteção que vão do material ao místico. Eu sempre me senti protegido por ter gatos por perto. Embora hoje eu não divida o apartamento com um deles, divido a vizinhança, e quando vejo algum frajola a passear pelos telhados daqui, quando cruzo com um siamês na rua, quando visito um amigo e sua gata tricolor, tomo sempre como um bom presságio. Outro dia, conversei com um rajado que passou ao meu lado no parque: ei, psps, não tem algum amigo seu precisando de abrigo, não? Ele me olhou durante um bom tempo, acho que ouviu bem. Espero que a fofoca se espalhe por aí. É apenas questão de tempo, eu não sei viver sem os gatos. Algo de sua presença é fundamental na minha calma. Observar um gato dormindo em seu conforto é para mim uma maneira simples de botar os pés no agora. 

Os gatos têm ciência do presente. Observam tudo com atenção, e sabem buscar o prazer sem demora, passando a língua áspera pelo corpo, afiando as unhas no tapete, rolando em cambalhotas com os outros, caçando o próprio rabo, enfim, sendo o que são. Para algumas pessoas, é insuportável vê-los tantas vezes satisfeitos com sua própria existência. Esta petulância, porém, é a razão de sua elegância. Imagino que seja um espelho assustador para quem vive insatisfeito. É difícil admitir, não é? Essa nobreza de bigodes sabe viver melhor do que a maioria de nós. Claro que, assim como nós, os gatos têm seus momentos de tédio, de carência, de medo e dor. No entanto, há uma diferença, um gato não se esquece como é bom se espreguiçar ao Sol.


Referências 

Montaigne, Ensaios
Nise da Silveira, Gatos, A emoção de lidar
Jiro Osaragi, O gato silencioso
Ceyda Torun, Kedi
Pedro Serrazina, Estória do Gato e da Lua
T. S. Eliot, O nome dos gatos
Pablo Neruda, Ode aos gatos

 

Como citar

LAURO, Rafael. Perguntar depois. Razão Inadequada, 2025. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2025/09/15/nobreza-de-bigodes/>. Acesso em: [inserir dia, mês e ano].
Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Jandira aligieri
Jandira aligieri
1 mês atrás

Amei esse texto! Muito interessante as observações da vida dos Gatos! Eu não tenho em casa, mas minha filha, advogada, tem e curte muito!

Shirley
Shirley
25 dias atrás

Tenho gato em casa, e é assim mesmo, o danado só faz o que quer…rs 😻