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Existem várias formas de um sujeito constituir-se, e existem vários motivos pelos quais um sujeito é levado a formar-se. Quando Foucault escreve sobre o uso dos prazeres, fica claro que há uma tensão entre o modelo grego (ético) e o cristão (moral). Isto fica bem claro ao tratarmos o conceito de Enkrateia, domínio que define a atitude que se deve ter a respeito de si mesmo para constituir-se como sujeito moral.

A enkrateia se caracteriza sobretudo por uma forma ativa de domínio de si que permite resistir ou lutar e garantir sua dominação no terreno dos desejos e dos prazeres”

– Foucault, Uso dos Prazeres, p. 80

Estamos longe da interioridade cristã, onde há uma atenção suspeita para si mesmo, muitas vezes na forma de acusação e luta contra as tentações demoníacas ou mundanas, o modelo grego procura um bom uso dos prazeres, não sua condenação. Por isso estabelece uma luta, um modo de resistência, um combate ativo. Ou seja, há aí a forma do guerreiro, daquele que se põe em perigo exatamente para provar-se, mostrar-se forte e resistente. Quanto maior o prazer que levaria à perdição, maior a resistência e maior o mérito.

Diferente da Sophrosune, que é a temperança, a Enkrateia tem o modelo mais agressivo, de um embate, seu oposto seria a akrasia: incontinência, que se deixa levar, arrastado, contra sua vontade, porque não tem força para resistir. O indivíduo precisa da Enkrateia para ter temperança, porque somente aquele que lutou e venceu pode se dizer dono de seus prazeres. Ao tratar do domínio de si, de certa forma um autocontrole, Foucault mostra como a Enkrateia entra na dinâmica dos prazeres gregos por ser uma provação, um desafio que o indivíduo precisa vencer para tornar-se dono de si mesmo.

Esse exercício da dominação implica, em primeiro lugar, uma relação agonística” – Foucault, Uso dos Prazeres, p. 82

Como saber se um sujeito é forte sem colocá-lo à prova? Como confiar em alguém que não mostrou seu valor ao superar desafios e dar mostra de suas capacidades? A Enkrateia é um campo de batalha, ela constitui o sujeito para ser resistente e vencer a luta no campo dos prazeres, para tê-los em seu domínio, à sua disposição. Somente instaurando esta atitude é que o homem grego mostrava-se capaz de conduzir-se eticamente, porque não é mais inferior ao seus prazeres, vítima deles.

Sim, claro, porque, como já falamos sobre a Chrésis, existem várias formas de prazer e várias formas de experimentá-los. Quem disse que os prazeres do corpo são ruins? Ninguém, porque não estamos no campo da categorização, mas os prazeres podem ser ruins se nos dominarem e nos levarem contra nossa vontade e contra aquilo que sabemos melhor para nós. É exatamente porque são prazerosos que são perigosos, e por isso devem sempre ser vistos como a devida cautela. Os prazeres podem afastar um homem do que ele pode, torná-lo fraco, inferior, impotente. É como um campo complexo de forças onde, se entrarmos nas correntes erradas corremos o risco de sermos arrastados para lugares que não queremos.

Essa relação de combate com adversários é também uma relação agonística consigo mesmo”

– Foucault, Uso dos Prazeres, p. 84

– Jean-Leon Gerome – Young Greeks Encouraging Cocks to Fight

Já disse Nietzsche, “Da escola de guerra da vida. — O que não me mata me fortalece” (Crepúsculo dos Ídolos, §8). Exemplo claro de princípio grego do cuidado de si. Depois de uma batalha, depois de se curar os ferimentos e enterrar os mortos, o sujeito sai mais forte, mais sábio, mais bem talhado pelas cicatrizes que foram deixadas. A batalha tem um único fim, a vitória de si sobre si.

Quando um sujeito luta contra os prazeres, o faz também em nome dos próprios prazeres, em nome de prazeres melhores, maiores, mais qualificados, para não tornar-se escravo de si mesmo. Há uma medida, uma valoração, da mesma forma que no prefácio da genealogia da moral: “qual o valor destes prazeres? serviram até agora para obstruir ou promover o crescimento meu crescimento? São sinônimo de miséria e degeneração ou de plenitude?“.

Fica claro então como é preciso uma genealogia dos prazeres, e para isso, é preciso um embate, uma medida e, enfim, uma vitória! Porque não há vitória maior que sobre si mesmo. Essa vitória não é uma extirpação dos prazeres, mas um bom uso deles, seu uso no momento certo, no agenciamento correto, para gerar o máximo de intensidade. Somente desta forma a relação com os outros se torna possível.

Em outras palavras, para se constituir como sujeito virtuoso e temperante no uso de seus prazeres, o indivíduo deve instaurar uma relação de si para consigo que é do tipo ‘dominação-obediência’, ‘comando-submissão’, ‘domínio-docilidade’ (e não, como será o caso na espiritualidade cristã, uma relação do tipo ‘elucidação-renúncia’, ‘decifração-purificação’)”

– Foucault, Uso dos Prazeres, p. 87

Neste campo de luta, é preciso exercitar-se, para estar constantemente prevenido, afinal, sabemos como os prazeres tomam de assalto, sem dar sinal. As metáforas de campos de batalhas e esportes implicam neste aconselhamento para treino constante, manter-se em forma, preparado. Isso só é possível quando se aprende a cuidar de si mesmo, aplicar-se consigo é uma maneira de conhecer o que está e não está em nosso poder, do que somos e não somos capazes. Os gregos sabiam que para ocupar-se dos outros, da cidade, da vida, é preciso antes, e de maneira intensa, ocupar-se consigo. Mesmo o conhecimento de si, tão valorizado, é um conjunto menor dentro do cuidado de si, apenas parte do todo.

Chegamos ao ponto da vida ser um exercício perpétuo, somente exercitando-se é que se pode vencer. Através dele é que se cria a prática, o hábito, a constância. Os cínicos realizavam exercícios de provação, para mostrar que eram dignos e donos de si. Os estoicos criaram exercícios mentais e físicos para colocarem-se à prova. Sendo também o fim em si mesmo, a conduta correta, dona de si mesma, é a pratica que começa e termina em si, porque torna mais forte e resistente. O fim da virtude é a própria virtude, diz Espinosa, não o fim para outra coisa (haja a vista o mundo suprassensível de várias religiões). Nesta luta, nem sempre se ganha, nem sempre se perde, mas se luta o tempo todo.

Vencida a batalha o prêmio e a glória são a própria vitória. Nasce um sujeito dono de si, aquele capaz de dominar seus prazeres, de fazer um bom uso deles, capaz de relacionar-se consigo e com os outros de maneira própria: “O mestre de si e dos outros se forma ao mesmo tempo”

– Foucault, Uso dos Prazeres, p. 95

Texto da Série:

Cuidado de Si

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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