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“Se não me mexo, se não viajo, tenho como todo mundo minhas viagens no mesmo lugar, que não posso medir senão com minhas emoções”

– Deleuze, Conversações

Escuto muito esta crítica: “pare de ler e vá viver a vida real“. Como se a leitura fosse uma substituição ou uma vida pela metade, pior, um ficar apenas na teoria. Discordo veementemente destas críticas, o livro é meu instrumento para viver mais e melhor, é uma ferramenta de gerar intensidades. Podemos usar o corpo de outra pessoa, usar drogas, comer, ver TV, viajar, eu também faço tudo isso, mas gosto muito também de me utilizar apenas de um bom livro.

E a lista é longa: romance, poesia, filosofia, psicologia, teatro, contos, história, ensaios, artigos, entrevistas e continua. É uma arte aprender a ler como ferramenta para produção de intensidades. Se você não fica com um frio na barriga ao abrir um livro, jogue-o fora, ele com certeza não presta pra você. Se você não chora quando algum personagem morre ou vai para a guerra, se você não sorri quando o mocinho se declara e beija a mocinha, se você não se irrita quando alguma coisa atrapalha o bom andamento do romance, pare. Simplesmente pare!

A boa leitura não é decodificar a ordem das letras no papel, isso é muito pouco, isso é como conversa de elevador, pura perda de tempo. A boa leitura deve liberar adrenalina, serotonina, aumentar seu ritmo cardíaco e fazê-lo suar frio, você pode rir e chorar, não tem problema. É preciso esperar ansiosamente pela próxima página. É preciso sentir, realmente sentir, a brisa no rosto quando o personagem corre, sentir um frio na boca do estômago quando ele cai de um precipício. Quando alguém grita “não”, devemos sentir nossas cordas vocais vibrando também.

O único problema é: “isso funciona?” Como isso funciona pra você? Se não funciona, se nada se passa, pegue outro livro. Essa outra leitura é uma leitura em intensidade: algo passa ou não passa. Não há nada a explicar, nada a compreender, nada a interpretar” – Deleuze, Conversações

Você nunca viu uma criança fechar os olhos quando lemos para ela uma história de terror? Este é o exemplo perfeito de uma leitura como produção de intensidades. Não se lê com os olhos, lê-se com o corpo inteiro! O livro e os olhos são apenas instrumentos para a produção de sensações. Aliás, esta é a definição de Deleuze para a arte: produção de sensações. “Mas isso não é viver realmente…”, quando escuto isso sempre peço para repetirem, “Quando você lê, não está lá, vivendo realmente!”. E o que seria viver realmente? Admito que sinceramente não sei, para mim, ler pode ser viver dez vezes mais que a maioria das pessoas. A boa leitura produz um corpo ultrapassado por intensidades (imagino que Deleuze concordaria que um bom livro pode gerar um Corpo-sem-Órgãos), coisa que muitas vezes não acontece aonde meus críticos chamam de “vida real”.

Não há diferença entre o cérebro lendo, lembrando ou vivendo realmente um acontecimento, há apenas uma diferença de, novamente, intensidades. “Mas isso não é vida real…”, e você saberia me dizer o que significa “vida real”? Tudo é o corpo sendo afetado: o vinho que se bebe, o metrô que se pega, o banho que se toma e o livro que se lê. São fluxos, partículas, forças que se ultrapassam e penetram. Mente e corpo são um só (clique aqui). Eu vivo pelo corpo, porque ele é afetado: o corpo afetando o cérebro e o cérebro afetando o corpo, tudo ao mesmo tempo, átomos interagindo com átomos numa reação em cadeia. No fim das contas, eu só conheço a vida intensa ou embotada.

Não é para isso que estamos vivos? Para seguir o caminho mais intenso possível? Não a mediocridade do caminho do meio (veja aqui). Então mãos à obra, retire aquele livro empoeirado da prateleira e transforme seu corpo numa máquina de sensações. Eu farei o mesmo…

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Constance
11 anos atrás

Minha nossa senhor Rafael T., você possui um blog interessantíssimo! Encontrei-o há pouco tempo pelo facebook de uma forma que não me lembro como, e deixei que ele mofasse por um tempo na aba dos favoritos intocados. Hoje por algum motivo que quase me faz pensar em acaso, coincidência ou misticismo barato e de má qualidade, resolvi abrir esta página virtualmente empoeirada e me deliciar com os seus escritos: concordar com alguns deles e refletir sobre outros. Geralmente nos habituamos a só discordar ou ignorar, o desejo que sacode as coisas é raro, você o têm. “Desejo”, bem, desejo por… Ler mais >

josé alberto dos reis
11 anos atrás

Rafael Trindade, pulando a rasgação de seda, que o blog é interessante e tal, mas eu queria saber mesmo que que você faz da vida?

Milena Klinke
Milena Klinke
10 anos atrás

AAAA, a doce e azulada beleza de ler! =)

Camila Costa
Camila Costa
10 anos atrás

o pior é quando dizem: “você vai passar o final de semana sozinha, lendo?!” como assim sozinha? como alguém poderia se sentir sozinha lendo Fernando Pessoa!!
Adorei seu texto!
Parabéns!