O liquidificador, por sua magnificência imanente, manifesta-se como um dispositivo material dotado de uma potência intrínseca capaz de desencadear transformações no espaço-tempo da matéria, operando uma eficaz dissolução ontológica entre elementos heterogêneos, a fim de permitir a emergência de novas formas de ser-no-mundo. Assim, o liquidificador se apresenta como um complexo sistema de agenciamentos maquínicos, tecidos por linhas de fuga intensivas, que se conectam em um devir incessante, engendrando o contínuo desdobramento da realidade em um fluxo constante de diferenciação e criação.
Que tal essa definição de liquidificador? Não podemos dizer que ela esteja errada (se é que alguém foi realmente capaz de entendê-la, a intenção definitivamente não era essa). O autor em questão é uma inteligência artificial, que atendeu à seguinte demanda: “defina o liquidificador de maneira enganosa usando conceitos difíceis”. Curiosamente, parece que a resposta veio direto de um liquidificador de conceitos, servindo o puro suco da covardia intelectual. A questão é que encontramos frequentemente esse tipo de discurso circulando por aí, em diferentes jargões filosóficos – mudam os conceitos, mas o gerador de lero-lero continua ligado.
Quando nos deparamos com esse gerador funcionando em um texto, precisamos dar um passo para trás e perguntar: qual é mesmo a função de um texto de filosofia? Não é uma pergunta fácil, porque existem muitas possibilidades de resposta. Do livro didático à pesquisa acadêmica, passando pela coluna de jornal, a filosofia cumpre diferentes papéis. No entanto, por mais amplos que sejam os critérios que caracterizam um texto filosófico, isso não significa que ele possa ser qualquer coisa. Será que a mistureba de conceitos, o falar difícil, a formalidade pomposa, são boas práticas para a escrita filosófica? Ah, quem dera o gerador funcionasse apenas na escrita. Ouvimos falar de um caso em que o filósofo, desejando estar sempre pronto para enunciar sua sabedoria, engoliu a máquina inteira!
É tão difícil quanto controverso definir a função do discurso filosófico, mas há um uso certamente repulsivo que está bem exemplificado no gerador de lero-lero: o uso compulsivo de conceitos como forma ilusiva de lidar com a própria ignorância. O conceito, enquanto imagem de sabedoria, transforma-se por meio desse uso em um recurso linguístico, utilizado apenas como maneira de simular o conhecimento. É claro que é difícil admitir não saber, mas é muito pior perder a capacidade de pensar a partir da ignorância, porque são justamente os limites do saber que dão real sentido a qualquer investigação.
Vivemos cercados pela exigência de produtividade, por isso é mais conveniente seguir com o lero-lero do que afirmar a falta de conhecimento. Falar em termos difíceis é um recurso que produz a aparência de sabedoria, possibilitando a produção incessante de ideias banais que parecem geniais. O fato de ser um recurso tão utilizado remete à necessidade de esconder uma característica inevitável do pensamento filosófico, que é a aporia, isto é, a conclusão de que, mesmo após muito esforço, ainda podemos permanecer sem saber. No entanto, a ausência de conclusões positivas não indica que permanecemos parados no processo. Quem acha que sabe tudo é que não sai do lugar. Os piores ignorantes são aqueles que não sabem que não sabem, diria Sócrates.
Simular o saber é uma maneira de diminuir o constrangimento da ignorância e também o anseio pelo conhecimento. No entanto, quando falamos em filosofia, nos referimos a uma tradição que distingue discurso e pensamento. Ou seja, articular palavras difíceis em um texto não é o mesmo que filosofar, assim como citar dois conceitos por segundo não é pensar. Aliás, também não é preciso usar a norma formal para fazer filosofia. O que chamamos de pensamento é algo que acontece no silêncio que se segue ao espanto e tudo o que podemos fazer por meio do texto é tentar levar os outros a este lugar, para que pensem por si mesmos, a partir de seus limites.
Quando a sorte nos favorece, encontramos situações em que conseguimos pensar em conjunto, mas quantas dessas situações não são interrompidas por um gerador de lero-lero ambulante… A filosofia é um modo de pensar que, para acontecer, precisa que o discurso habitual seja interrompido, daí sua tendência geral em se opor ao senso comum. Essa oposição é um jeito de chamar atenção para o fato de que falamos muito e pensamos pouco. A calma, a pausa, a escuta, a troca, a estima são características altivas do diálogo filosófico, que se perde quando alguém fala sem parar, movendo todos os nomes de autores que lhe vêm à cabeça. O gerador de lero lero é uma espécie de trapaça que faz todo mundo sair do jogo perdendo.
Nos bons textos filosóficos, há uma generosidade que não está no fato de se ensinar grande coisa, mas no mover a própria ignorância por meio de perguntas, que funcionam como estimulantes do aprendizado tanto em quem escreve quanto em quem lê. Assim sendo, a nobreza da filosofia não está na beleza do discurso cheio de respostas, mas na sutileza com que se propõe um percurso de indagações sinceras e respostas provisórias. Ou seja, o pensamento será tão enriquecedor quanto sua capacidade de mobilizar nos outros a vontade de participar de suas questões. Quem fala como um papagaio diplomado não está preocupado com isso, pois apenas repete o que convenientemente aprendeu a chamar de pensamento. Na realidade, seus discursos mais impressionantes são justamente os mais vazios.
Seja na forma digital algorítmica ou analógica compulsiva, em bits e bytes ou em carne e osso, o gerador de lero-lero é apenas um meta-liquidificador de conceitos. Ele sabe misturar tudo direitinho, seguindo todos os passos lógicos que prometem sentido na linguagem, mas não consegue perguntar-se sobre a pertinência de fazê-lo, ignorando uma das mais básicas premissas do pensamento cuidadoso: permanecer com uma boa pergunta é melhor do que terminar com uma má resposta. Em tempos em que discutimos a possibilidade das inteligências artificiais substituírem as humanas, talvez precisemos voltar a nos perguntar o contrário: por que será que tantas vezes nos tornamos máquinas de repetir conceitos?