Quando um tecido do nosso corpo é lesionado, ele começa prontamente a se reconstituir. Um corte superficial na pele desaparece em algumas semanas, como se fosse mágica. Mais do que isso, nosso corpo tem um sistema bastante complexo dedicado a cuidar de sua própria integridade, combater ameaças e restabelecer a normalidade. Quando ele não dá conta, nós costumamos procurar a ajuda de um médico. O que ele faz exatamente? Uma resposta rápida poderia ser: “o médico descobre o problema e cura o paciente”. Não é uma resposta muito acertada, porque o que ele realmente faz é criar condições (nutricionais, funcionais, ortopédicas) para que o nosso próprio corpo seja capaz de se restabelecer. A ideia de cura por meio de uma determinação absolutamente exterior é um engodo que pode nos causar muito mal.
Quando passamos do campo puramente fisiológico para o psicológico, as coisas começam a ficar mais sutis. O que faz um psicólogo? Tendemos àquela mesma resposta rápida: “o psicólogo trata nossas crises existenciais por meio dos melhores conselhos”. No entanto, isto está muito distante da verdadeira prática clínica, que está voltada, de maneira análoga à médica, para a criação de recursos que tornem alguém mais capaz de agir sobre a situação de que se queixa, ou até mesmo de perceber que, na verdade, a questão possui raízes mais profundas do que os sintomas iniciais. Isso se dá por vários caminhos, que geralmente começam com o acolhimento, com a criação de um espaço seguro e seguem com a utilização de ferramentas como a elaboração do passado, a intervenção por meio de perguntas estranhas, a ênfase curiosa em pensamentos recorrentes, as hipóteses e experiências propostas, entre muitas outros. Por essa perspectiva, fica difícil de imaginar que o psicólogo é responsável pela cura do paciente, não é?
Na Grécia antiga, alguns filósofos eram chamados de médicos da alma. Especialmente no período helênico, quando a religião grega foi colocada em cheque pela dominação macedônica, a filosofia incorporou objetivos terapêuticos, até então menos relevantes do que as especulações sobre a natureza. As escolas estoica e epicurista representam em alto nível o pensamento que alia o estudo da física, da lógica e da ética em função da libertação dos temores, da boa disposição de si, da relação harmoniosa com a cidade e com os outros. Quando no contexto do helenismo perguntamos “o que faz o filósofo?”, vemos que a filosofia não se tratava de um conjunto de livros, mas de uma comunidade viva em que o pensamento se apresentava tanto na forma especulativa quanto na forma de exercícios. Ser filósofo significava dar corpo a uma doutrina que, diferentemente da religiosa, não tinha relação direta com os deuses, mas com a sabedoria. Quem quisesse tornar-se filósofo, precisaria tomar contato com as ideias e fazê-las valer na maneira como vivia, o que não significava, entretanto, submeter-se passivamente a um conjunto pronto de pensamentos. Ao contrário, supunha a autonomia como expressão da própria filosofia no sujeito.
Interseccionando de maneira um tanto controversa os campos da medicina, da filosofia e da psicologia, está a autoajuda. Rastreando suas origens, chegamos aos norte-americanos do final do século XIX, onde o termo Self-Help surgia nos círculos de pensadores liberais, que já aventavam a necessidade da proatividade do indivíduo no alcance da prosperidade financeira. No entanto, o termo começou a ganhar o sentido que conhecemos apenas na primeira metade do século XX. Um exemplo é “Pense e Enriqueça”, livro de 1937 escrito por Napoleon Hill, em que ele sustenta que a repetição de pensamentos positivos atrai felicidade e riqueza ao participar do que chama de “inteligência infinita”. Inaugurava-se uma tradição de escritores que colhiam da medicina, da psicologia e da filosofia, o que consideravam útil em função dos valores do self-made man, expressão surgida em 1842, proposta para descrever os indivíduos que continham o sucesso em si mesmos, independente das condições exteriores.
Desde então, a autoajuda se transformou em um gênero literário, ganhou as vitrines das livrarias e representa um fenômeno de vendas no mundo todo. Estes livros têm como caráter geral o uso mais comunicativo possível da linguagem, isto é, a tentativa de ligar as palavras diretamente aos seus significados hegemônicos ou, poderíamos dizer, ao senso comum. Livros como “Homens são de Marte, Mulheres são de Vênus” e “Como fazer amigos e influenciar pessoas” são exemplos de best-sellers que se vendem como guias para o sucesso relacional e pessoal. Em termos linguísticos, parecem uma receita de bolo para lidar com as questões da existência: organizam os passos, prometem atalhos, enumeram conselhos, listam proibições, antecipam a experiência, assumem consensos e fornecem exemplos atrás de exemplos atrás de exemplos, dos quais se extrai uma narrativa como moral da história – tudo isso embasado na extração do que encontra de essencial, segundo eles, na filosofia, na psicologia, na medicina e até na espiritualidade.
Para quem já estudou um pouco mais a fundo estas áreas do conhecimento, o nome autoajuda soa como uma piada – parece mesmo que eles não se ajudam. No entanto, apoiar-se em preconceitos estéticos ou ideias conservadoras sobre a tradição para criticar a autoajuda não favorece a conversa com quem de fato gosta e considera úteis estes livros, ou seja, não nos ajuda a reposicionar os valores nos seus devidos lugares. Antes de mais nada, precisamos reconhecer os objetivos compartilhados: medicina, psicologia e filosofia definitivamente não querem machucar ou entristecer, elas também visam saúde, alegria e liberdade. No entanto, o caminho que propõem passa necessariamente pelo sofrimento. Aqui se apresenta uma grande diferença: estas áreas sabem que a felicidade é um tema complexo que envolve necessariamente a dor, a angústia, a tristeza. O ponto nevrálgico da crítica à autoajuda precisa estar no seu entendimento da autonomia como algo descomplicado, ou melhor, desvencilhado da nossa condição de seres dependentes uns dos outros e do mundo, para os quais a boa vida depende de grande esforço e não exclui a tristeza.
Em tempos em que o pensamento, assim como todo o resto, foi transformado em produto, a promessa de autonomia vende milhões. Principalmente quando ela é despida de suas dificuldades, facilitada para o consumo pela ilusão do objeto-livro e da palavra-mágica, que contém ambos a solução pronta. Em torno da autoajuda, está a crença de que o autor pode operar no leitor a própria cura, transmitida pelo texto. De fato, nosso corpo é capaz de autoajudar-se, de autocurar-se, mas em que sentido? No caso da filosofia, isso se faz por meio de um exercício lento e corajoso em que se encara a si mesmo na relação com um mundo contraditório e enorme. Nela, o contato com o livro estimula o movimento do pensamento, porque ler é compartilhar com um autor ou autora as questões dos períodos mais diversos da existência humana, tomando parte tanto nas alegrias quanto nas dificuldades de todos os tempos.
Nos termos do pensamento filosófico, o objetivo da autonomia nunca foi a felicidade a qualquer custo. Ao contrário, encontrar em si mesmo um nomos, uma lei pela qual se guiar, é um esforço crítico que, conforme se exerce, modifica os objetivos em função das múltiplas possibilidades de efetuação da felicidade encontradas. Não há isonomia na filosofia, isto é, não há como encontrar um pensamento atemporal e impessoal que valha ser enunciado fora da trama de seus conceitos. Seja como for, “Pense e Enriqueça” continua imbatível como um dos livros mais vendidos de todos os tempos. Ao que parece, o autor fez valer o título de seu livro, ao menos para ele próprio. Talvez isso resuma bem o objetivo deste gênero de livros: ajudar os autores a ajudarem a si mesmos até o sucesso de vendas.
Reflexões excelentes!