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Se perguntarmos “o que é a vida?” a vários biólogos diferentes, receberemos uma grande variedade de respostas. Alguns vão falar mais sobre suas propriedades químicas, físicas e informacionais; enquanto outros chamarão atenção para a célula, a entidade mais básica de qualquer organismo. São boas respostas que, aliás, não se excluem, mas há ainda uma terceira com a qual a maioria deles concordaria. O geneticista Herman Muller, ganhador do prêmio Nobel, propôs em 1966 uma síntese como resposta, dizendo que vivo “é aquilo que possui a capacidade de evoluir”.

O que os biólogos chamam de evolução é o mecanismo que explica toda a variedade de formas de vida existente sem invocar qualquer tipo de deus sobrenatural que teria criado tudo a partir do nada. Assim, partimos da ideia de que tudo o que vive descende de um ancestral comum nascido fortuitamente a partir de condições químicas convenientes. 3,5 bilhões de anos depois e cá estamos nós, no meio de incontáveis outras formas de vida diferentes. O princípio que regula a evolução e explica essa diversidade é o da seleção natural, que podemos resumir como uma interação que modela os traços relevantes de uma determinada espécie segundo suas condições de adaptação ao ambiente.

Tomemos, por exemplo, o pescoço comprido das girafas. A simples existência dessa característica, nos permite deduzir que a acumulação de variantes que permitiu a algumas delas alcançar os ramos mais altos das árvores, tornou-as mais capazes de se alimentar e, assim, de se reproduzir de maneira mais eficiente, passando adiante a informação de que um pescoço alongado é uma vantagem para a condição de vida destes animais em tais ambientes.

Para evoluir, todo ser vivo – das sequoias aos plânctons, passando pelas borboletas – depende de três características: reprodução, hereditariedade e variabilidade. A vida persiste porque é capaz de produzir descendentes, passar a eles informações relevantes e variar ao longo do tempo. Antes de mais nada, um ser vivo é uma organização distinta da matéria capaz de persistir por tempo suficiente para lançar adiante as informações que o permitiram existir daquela maneira.

Resumindo, se não houvesse reprodução, não haveria evolução; assim como, se não fosse passada alguma informação, nada poderia evoluir. A questão é que apenas essas duas condições não explicam o surgimento de novos aspectos nos descendentes, é preciso que aconteça alguma distorção na mensagem para que uma novidade apareça. Uma das coisas mais interessantes do processo evolutivo é a maneira como a variação se insere, tão indispensável para a vida quanto a reprodução e hereditariedade.

A variação é um erro que ocorre na divisão celular, quando a informação do DNA – nossa biblioteca particular de informações sobre a vida – é copiada para a nova célula. Esta não é única maneira pela qual uma espécie varia, principalmente no caso daquelas que se reproduzem de forma sexuada. Mesmo assim, tudo indica que a mutação e a deriva são as formas primárias de variação gênica – e ambas acontecem além da determinação plenamente previsível.

Não é estranho que a vida precise incluir cuidadosamente o erro para que então haja a criação de novas espécies? Poderíamos dizer que, segundo a biologia, a grande diversidade de seres vivos que conhecemos se reporta à transmissão de uma informação que foi se modificando conforme passava de geração em geração durante bilhões de anos, como um longo telefone sem fio, a maior e mais ambiciosa brincadeira de comunicação que já existiu.

Vocês devem saber como funciona a brincadeira: a frase inicial é dita bem baixinho no ouvido de alguém, que passa adiante a ideia, que é logo transmitida seguindo uma fila de pessoas; conforme a mensagem avança, vão surgindo mínimas alterações, que aparecem segundo o que cada pessoa compreende e reproduz da mensagem que lhe chega. Quando o último da fila finalmente enuncia a frase em voz alta, ela se distorceu a ponto de dizer outra coisa! É assim que “Sócrates, o pai da filosofia” se transforma em “os hóspedes da sua tia”.

Talvez, assim como na brincadeira, a graça da evolução esteja nesse imprevisível erro que passamos adiante. Isso nos leva a perguntar: qual será o estatuto ontológico do erro? Dito em outras palavras, como avaliar a importância do desvio naquilo que somos? Indo ainda mais longe, como pensar a falha no pensamento? Afinal, será que existem erros que aperfeiçoam? Estas são perguntas que buscam uma legitimidade para o acaso dentro de um pensamento absolutamente determinista.

A questão é que o erro não pode ser grande demais. No longo prazo, as espécies mais bem sucedidas são as que conseguem manter o equilíbrio entre a constância e a mudança. Se a variação gênica for muito grande, é improvável que o novo organismo sobreviva às condições em que foi criado, porque o DNA que ele recebe é um dicionário de proteínas necessárias à sobrevivência do seu antecessor e ele provavelmente precisará disso para viver. Por outro lado, se não houver mudança, não haverá adaptação nem evolução. Ou seja, se a taxa de erro for alta demais, a informação deixa de fazer sentido; agora, se não houver erro, então não há mudança..

Mais interessante ainda é o fato de que os seres vivos sabem que erram. A célula possui mecanismos para diminuir a incidência de erros no processo de cópia de uma hélice de DNA, ela é capaz de consertar algumas mutações e arruma um jeito de alinhá-las ao resto do código. Mesmo assim, o erro sempre persiste em uma modificação, ainda que pequena. Ninguém é capaz de suprimi-lo por completo, somos seres que calculam os erros.

Parece que o erro insiste em aparecer em todos os âmbitos de nossa vida, a começar pelo momento mesmo em que herdamos nossas primeiras informações, chegando até o próprio pensamento, que se move tateando às cegas pelo limite das coisas. Pensem bem, como o conhecimento se move? Ninguém consegue antecipar o resultado exato de uma nova experiência. A gente vai errando, até acertar.

A palavra erro tem origem no latim e significa “perder-se, andar sem destino, cometer uma inadequação”. Ora, não é isso que estamos fazendo desde sempre? No âmago da racionalidade repousa a inadequação, o que só faz elevar sua potência. A grandeza da vida depende de uma deriva inerente e nós também somos fruto desse escorregar das estruturas, que nos faz encontrar o que sequer imaginávamos que existia.

 


Referências 

Anne Carson, Ensaio sobre aquilo em que eu mais penso, Ed. 34
Paul Nurse, O que é a vida?, Ed. Intrínseca
Scavengers Reign, The Sign, Hbo max
David Hume, Tratado da Natureza Humana, Ed. Unesp


Como citar

LAURO, Rafael. Um longo telefone sem fio. Razão Inadequada, 2023. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2023/11/20/um-longo-telefone-sem-fio/>. Acesso em: [inserir dia, mês e ano].
Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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2 Comentários
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brenda
1 ano atrás

Isso foi maravilhoso! A união da ciência e da filosofia em um só texto! Adorei! Muito obrigado!