Dar nome às coisas não é uma tarefa qualquer: como descrever algo em seu existir? É claro que podemos dizer, por exemplo, como uma maçã aparece para nós: descrever atentamente cada detalhe; contar sua história de fruto; rastrear a macieira que lhe deu origem; registrar suas mudanças ao longo do tempo. Isso não muda o fato de que, pousada ali mesmo na fruteira, podemos encontrar outra maçã, que é ao mesmo tempo igual e diferente da primeira – carrega o mesmo nome em outro corpo.
Nós inventamos os nomes para que as coisas possam ser designadas a partir de suas semelhanças. É para isso que os nomes servem. No entanto, quando paramos para observar com cuidado, percebemos que existe um desacordo fundamental entre os nomes e as coisas. O paradoxo da identidade torna este fato evidente: uma maçã continua sendo uma maçã depois de mordida? Neste exemplo, a pergunta pode parecer apenas um desvario filosófico de alguém que não está com fome, mas suas implicações nos atingem profundamente quando passamos das coisas gerais para as coisas humanas.
Como dizer o que é uma pessoa em seu existir? Mais uma vez, podemos dizer como alguém nos aparece: o tom de sua voz, a cor de seus olhos, a dinâmica de seus gestos e assim por diante; mas é difícil reduzir alguém ao seu mero aparecer. Por isso, utilizamos nomes próprios; mas mesmo assim eles se repetem. Convivemos com a estranha sina de encontrar em todo lugar um outro José ou João. Os sobrenomes ajudam a evitar o transtorno de identidade que o nome repetido em outra pessoa pode causar. Até que funciona, mas não é incomum encontrar pessoas com o nome exatamente igual. São a mesma pessoa? Obviamente não, basta olhar para as pessoas.
O que é curioso, entretanto, é que existem usos dos nomes que podem modificar profundamente a maneira como as coisas são percebidas. Nós não costumamos pensar que dois Rafaéis sejam a mesma pessoa, mas é nomal pensar que dois homens sejam muito parecidos entre si. Em outras palavras, nós acreditamos que algumas palavras realmente são capazes de dizer algo sobre o ser das coisas. Talvez não estejamos errados, mas quais são estas palavras? Como escolhemos os melhores nomes para falar do que as coisas são? Não é a mesma coisa que Maria seja homem ou mulher, branca ou negra, heterossexual ou não. Não é curioso? São apenas nomes, mas alguns exercem mais pressão do que outros sobre aquilo que nós somos.
Parece que alguns nomes se soltam de seus objetos e ganham uma substantividade própria: a masculinidade, por exemplo, diz do ser homem, sem recorrer a nenhum homem específico. A operação continua a mesma, masculino é apenas um nome criado para descrever traços em comum, mas como qualquer outro nome, permanece incapaz de efetuar perfeitamente uma operação de identidade entre diferentes pessoas – o problema é que esquecemos disso. Por exemplo, quando dizemos de duas pessoas diferentes que são mulheres, estamos dizendo que elas compartilham algo em comum – mas o que exatamente? Responder a essa pergunta é recair na mesma dificuldade do início, quando olhávamos as maçãs, com a diferença de que aqui uma má resposta pode ser responsável por grandes violências.
É estranho o poder que as palavras têm. No dizer coletivo do mundo, algumas palavras dão contorno às possibilidades do ser. Por esse motivo, determinados nomes são funções que relacionam duas características de forma tão rígida que acabamos obrigados a nos submeter às suas operações. É isso que alguns chamam de norma: um conjunto organizado de coerções e mecanismos regulatórios que funcionam para manter em funcionamento os princípios de comparação estabelecidos nos nomes. A origem da palavra ajuda a compreender, norma vem do latim normalis, um instrumento geométrico usado para traçar perpendiculares, como uma régua em formato de T. É daí que vêm as palavras normalidade e normatividade, que começaram a ser usadas ao longo dos séculos XIX e XX no campo médico.
Uma norma é um nome que conecta duas ideias por meio de um ângulo predeterminado na interação social. Em outras palavras, a norma é um juízo socialmente determinado, ela não é uma definição do uma coisa é, mas do que deve ser. Assim, o normal é uma espécie de reflexo adquirido na sociabilidade, que nos leva a formar um conjunto limitado de traços a partir do que uma palavra deve significar. Por exemplo, quando dizem que uma mulher é “mãe”, isso não significa apenas que ela é responsável por uma criança, mas que o que a torna inteligível enquanto “mãe” é uma série de atributos anteriormente determinados e bem pouco flexíveis. Ou seja, a normatividade inerente à maternidade envolve uma interação entre o nome e o conjunto de traços que o faz ser legitimamente reconhecível.
A questão é que esse jogo pode ser muito violento. Nós somos qualquer coisa de inominável, que possui inúmeras maneiras de aparecer, mas o uso normativo que fazemos dos nomes muitas vezes toma essa potencialidade em assalto. O que alguém transfóbico, racista e/ou machista faz senão insistir violentamente que a relação normal entre os nomes foi desrespeitada? Não importa o que é o ser, quais são seus desejos e a vida que lhe atravessa – ao ignorante importa que os ângulos possam ser traçados sem dificuldade: isto é uma mulher, isto é um viado, isto é um negro. Para ele, questionar o que cabe nessas palavras é balançar a estrutura que sustenta a sociedade.
Ora, ao menos nisso ele está correto. Guardadas as devidas diferenças, perguntamos: quais são os pontos em comum das lutas feministas, antirracistas, pela liberdade de sexo e gênero? Um deles, sem dúvida, é esse balançar das estruturas normativas, que amplia o escopo do que significa ser homem, mulher, negro, trans, travesti, gay, bi, etc. Ao fazer isso, elas permitem ao ser que tome corpo de novas maneiras. É para isso que lutamos, para fazer caber mais do que somos nas palavras que nos foram designadas antes mesmo de nascer. O mundo já estava pronto, as palavras devidamente amarradas, mas existir é olhar as coisas do lugar de onde elas não têm nome.
Muito bom! Os nomes são como redes de confinamento. Penso no amor, por exemplo. Quando nos apaixonamos, tudo que menos queremos ouvir é que a outra pessoa nos vê como uma amiga. Mas, caramba!, o que distancia a amizade do amor? Claro que há uma certa dose de egoísmo no amor, neste caso, mas um nome (“amiga”) destroça uma possibilidade de realização do amor intensa, já que a amizade presume confiança, o que é algo muito bom.