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Em filosofia, a primeira vez é já a segunda” – Deleuze

No dia da criação, a filosofia andava por aí, distraída, questionando por que existia o nada em vez de alguma coisa. Foi então que Deus criou o Universo, colocou cada coisa em seu lugar segundo sua divina vontade e apertou o botão de ligar. Em seguida, reuniu todas as formas de conhecimento para instruir a cada uma o seu devido conteúdo programático. Quando deu pela falta da filosofia, se irritou; ela chegou atrasada, inocente de seu erro, e Deus não soube o que fazer com ela. Desde então a filosofia é a filha desnorteada do conhecimento, perambulando pelos diversos campos do saber tentando encontrar o seu lugar no mundo.

Filosofar é recomeçar, é estar sempre no meio, esta é a ideia que defenderemos aqui. Não existe um primeiro filosofar, não existe um começo da filosofia, como defendem todos os manuais escolares. A existência é um trem em movimento, no qual a filosofia se vê dentro, levada, e tenta sentar na janela para apreciar a melhor a paisagem. Ou seja, o conhecimento não espera pela filosofia, aliás, os conhecedores muitas vezes se irritam com a sua impertinente chegada. Afinal, tudo já estava aí, funcionando muito bem, antes do pensamento filosófico aparecer sem ser chamado. “Tudo estava constituído”, responderia o filósofo, “mas ainda não tinha sido suficientemente pensado”. Por isso ele chega e começa a fazer suas perguntas, para repensar o pensamento.

Não basta pensar, é necessário pensar mais uma vez. Não basta que tudo já tenha acontecido e esteja funcionando razoavelmente bem, é necessário que tudo se repita. E é na repetição daquilo que é que o filósofo encontra os pontos fortes e fracos do acontecimento. Aí está seu interesse, não só pensar, mas repensar, insistir e repetir. É para isso que existe o filósofo, muitas vezes rindo dos frágeis argumentos da ciência, fazendo caretas para os dogmatismos da religião, e denunciando os absurdos da política.

O filósofo não tem por onde começar, ora, mas ele sempre precisa partir de algum lugar. Normalmente, a opinião é o seu ponto de partida, mas não no sentido de uma oposição feroz, como se costuma imaginar. Muito pelo contrário, Sócrates, por exemplo, tinha prazer em encontrar um ateniense na rua disposto a conversar, independente do quão diferente dele pensasse este alguém. Sua ironia era brincalhona, ele dizia, “ora, meu jovem rapaz, que bom ver você se preparando para lutar na guerra, mas me diga apenas uma coisa, se for de teu agrado, claro, o que é a coragem?”.

Há um esforço completamente diferente aqui, o filósofo não é o sábio que faz uma descrição precisa do que é a coragem, a justiça ou o belo. Antes, ele se esforça para pensar que nada sabe, apenas então pergunta, com o objetivo de, se possível, poder pensar algo novo. Ele não quer começar, ele nem saberia, ele só pode, uma vez mais e de novo, recomeçar a pensar. Seu pensamento é sempre com os outros, ou mesmo com suas próprias ideias sedimentadas. Um matemático fez um teorema? Ótimo, o filósofo se sente convidado a discutir sobre isso. Uma bióloga descobriu algo? Muito bom, lá estará a filósofa quando os resultados forem apresentados. Um físico postulou uma nova maneira de compreender o universo? Maravilha, já é possível ver a filósofa de plantão, com seus olhos brilhantes, esfregando as mãos, querendo saber melhor quais são estas ideias.

Filosofar é a atividade de instaurar uma outra relação, diferente daquela que já estava constituída, é buscar uma nova maneira de ver. Ou seja, é reinstaurar. Ou talvez, até mesmo, restaurar, quando um pensamento anterior que perdeu sua dignidade e força. Esta é a sua aposta, reativar o pensamento que está lá. E mais, através deste processo, os modos de pensar não só podem como devem mudar, esta é sua exortação. Sempre é necessário um renascimento, porque sempre há uma catástrofe acontecendo. É um meteoro que cai, é uma enchente que leva tudo, uma seca destrói a mata original. E agora, o que fazer? Ora, refazer. Não basta que tudo comece, é preciso que tudo sempre recomece.

Vejam bem, não nos interessa dizer que a filosofia é como é a mãe de todas as outras formas de conhecimento, esta imagem da matriarca, no fundo da foto, orgulhosa de seus filhos crescendo, é muito familista para expressar bem o que a filosofia é. Tampouco é interessante a imagem de um pai severo que critica ferozmente seus filhos, na boa intenção de aperfeiçoá-los. A violência da crítica é reativa demais para descrever bem as intenções da filosofia. Em suma, ela não é mãe nem pai de nada nem de ninguém. Se fosse assim, isso implicaria ela poder envelhecer, ficar para trás, ser esquecida. Mas esta visão genealógica contradiz nosso mito fundador, ela não veio antes, chegou atrasada, é a filha desnorteada do conhecimento. Ela está sempre no meio, por isso sua vez de pensar é sempre a segunda.

Admitimos que a filosofia às vezes repreende, mostrando com severidade as tolices nas quais constantemente nos perdemos. Mas muito mais reaprende, porque está sempre preocupada em mostrar que ela também ainda não sabe direito sobre o que está falando. O filósofo mantém sempre um pé atrás, mas nunca de modo passivo, como se estivesse eternamente sentado na cadeira do aluno, isto não, porque um filósofo precisa saber de muitas coisas para poder aprender com os outros.

Para Platão, a filosofia era a arte de relembrar um conhecimento que de alguma maneira já estava encravado em nós. Aprender é reaprender. Tudo já está aí, mesmo sem saber, meio que já sabemos tudo, mesmo sem saber direito como expressar bem isso em palavras. O trabalho do filósofo é nos ajudar a parir estas ideias, como uma boa doula sabe fazer com a grávida.

Isso responde à pergunta do por que ainda existe a filosofia. Afinal, por que ela insiste em existir? Por que ela resiste às formas atuais de conhecimento, tão validados e efetivos? A filosofia não é imortal, mas, sempre que morre, retorna das cinzas como uma fênix. Que teimosia é esta? Ora, parece que a filosofia ainda tem algo a dizer. Ela precisa eternamente recomeçar suas atividades, por mais inconveniente que seja, porque parece que ainda não foi capaz de pensar tudo o que pode ser pensado.


Referências

  • A Ilha deserta – Gilles Deleuze 
  • O que é Filosofia? – Heidegger 
  • Recomeçar – Tim Bernardes
  • Apologia a Sócrates – Platão

Como citar

TRINDADE, Rafael. Recomeçar. Razão Inadequada, 2024. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2024/07/29/recomecar/>. Acesso em: [inserir dia, mês e ano].
Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Miguel Mascena
Miguel Mascena
3 meses atrás

enxergar a novidade na repetição é uma das formas de encontrar espaço para uma outra possibilidade. adoro como sempre que há um texto novo vocês reúnem e articulam ideias que já tive, ou melhor ainda, que jamais pensei que teria. ótimo texto!

Thais
Thais
3 meses atrás

Good!