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Há quem tenha morrido duas vezes, mas não deveria – é preciso fazer-lhes justiça. Que a morte seja um destino que nos sobrevém individualmente, ninguém pode negar, mas poucos admitiriam que ela vem uma segunda vez. Fato é, porém, que o esquecimento é nossa segunda despedida: começamos a morrer no dia em que o coração para, terminamos quando nosso último traço se apaga na noite. Chegará o tempo em que ninguém mais lembrará de nosso nome. Nosso caminho de risos e lágrimas também encontrará o seu lugar de descanso eterno. No entanto, estamos vivos agora, e prolongamos a vida de muitos dos que já se foram. Fazemos isso como uma maneira de honrar as pessoas queridas com quem compartilhamos a terra, mas essa capacidade não deveria ser reduzida às relações íntimas: a memória coletiva possui uma função revolucionária. 

Costuma-se pensar a história como uma sequência de fatos que faz do presente o que ele é. A partir dessa ideia, bastaria uma boa pesquisa, capaz de encontrar os documentos e colocar os eventos em ordem para compreender o estado atual das coisas. Esta concepção é o resultado de uma aplicação bastante rasa do determinismo científico no campo das humanidades. Ainda assim, nos séculos passados muitos pesquisadores se deslumbraram com a possibilidade de fundar uma história universal, que fosse como uma linha coerente a atravessar todos os pontos, conciliando os fatos em uma narrativa única.

Walter Benjamin, filósofo judeu associado à escola de Frankfurt, suicidado pelo terceiro reich em 1940, escreveu um conjunto de teses curtas sobre a história que criticavam esse historicismo de ideologia progressista. Muito influenciado pelo materialismo histórico-dialético marxista e também pela crítica nietzscheana da utilidade da história para a vida, ele deixou naqueles fragmentos um apelo que se tornou fundamental para pensarmos a tarefa de nossos tempos em sua  relação com o passado, ele dizia muito simplesmente: a história não é um mero conjunto homogêneo de eventos, mas um tempo preenchido pelo Agora1. O que isso significa? Que a história não é um arquivo neutro de fatos, mas uma leitura do passado feita por quem a observa no presente. O problema é que, em cada tempo histórico, essa narrativa tende sempre a ser moldada pela classe dominante. Em palavras fortes, ele escreveu: “nem os mortos estarão seguros se o inimigo vencer”.

Encontramos nas teses do filósofo uma missão: reconhecer que a história é uma narração aberta do passado e nos apropriar disso para transformar o futuro2. Como? Redimindo os mortos de seu esquecimento, ou melhor, devolvendo aos acontecimentos uma leitura que faça jus àqueles e àquelas que, por terem suas vozes caladas, não puderam deixar suas perspectivas sobre o ocorrido. Se nós, filhos e filhas do agora, não soubermos ouvir esses sussurros, estaremos condenados à mesma violência mítica que transforma os cemitérios em jardins3. Em outras palavras, é preciso combater essa força que apaga toda a discordância, toda a revolta, toda a luta em uma narrativa pacificada, conveniente aos que estão interessados em manter as coisas como são.

Assim, lembrar dos vencidos é mais do que simplesmente fazer-lhes honra, é atender às demandas do próprio presente. A recordação não é um retorno ao passado, mas a sua repetição como ato4, ou seja, é pela memória que nós temos a chance de trazer à tona a violência que, apesar de esquecida, continua subjacente, produzindo efeitos na superfície. Por mais dolorido que seja lembrar, por mais que isso nos obrigue a encarar os fatos mais sombrios, esse é o processo que nos permite lançar alguma luz adiante. É justamente o fato de ter sido esquecido que permite à violência continuar retornando: a paz prometida pelo esquecimento serve apenas aos senhores. 

O passado exerce um poder real e, se não o tomamos nas mãos, perdemos a chance de identificar e combater os inimigos que continuam aí. É preciso resgatar da vala comum da história todos os comunistas assassinados, as anarquistas desaparecidas, os loucos trancafiados, as travestis torturadas, os músicos censurados, os poetas exilados, todos e todas aquelas que, por acreditar que outra vida era possível, foram forçadas ao silêncio fúnebre dos arquivos queimados. Em suma, contar as histórias dos mortos e desaparecidos políticos é uma forma de encontrar lugar para eles entre os vivos – e são tantas as pessoas dignas dessa sobrevida que podemos dizer que o resgate mal começou. 

No Brasil, país onde impera o mito da cordialidade, existe ainda o senso comum de que a ditadura militar foi branda. É curioso, afinal ela durou mais de 20 anos, prendeu mais de 50 mil pessoas e as torturou de pelo menos 30 maneiras diferentes5. Isso sem contar os milhares de casos em que, por circunstâncias de pobreza e etnia, sequer é possível atribuir um número às vítimas, pois não foi registrado qualquer episódio de violência. Ademais, vimos a lei da anistia, pensada para suspender as penas de presos políticos, servir de perdão aos torturadores. Até hoje nosso país está submetido a uma grande força de falsificação da história, que visa impedir a memória das vítimas e aliviar a culpa dos criminosos. Enquanto não opusermos mais resistência, seremos obrigados a assistir as figuras mais abomináveis na câmara nacional, atualizando esse passado com homenagens repulsivas. 

O passado está sob a inspeção do presente, e ele é fabricado a todo instante em função do Agora. Se os valores que hoje regem a pauta transformam toda a história em uma marcha progressista, que tenta justificar ou apagar os detalhes sórdidos, então a memória é uma forma de combate, através do qual nos unimos à trincheira daqueles com quem compartilhamos uma ideia de mundo. Que os mortos descansem em paz, é uma prece e um desejo recorrente dos vivos. Como, porém, depois de sofrer tantas injustiças, eles poderiam descansar no esquecimento?


1 “A história é objeto de uma construção cujo lugar é constituído não por um tempo vazio e homogêneo, mas por um tempo preenchido pelo Agora” Walter Benjamin, Teses sobre o conceito de história.
2 “Articular historicamente o passado não significa reconhecê-lo “tal como ele foi”. Significa apoderarmo-nos de uma recordação quando ela surge como um clarão no momento do perigo” Walter Benjamin, Teses sobre o conceito de história.
3 Jeanne Marie Gagnebin tem um texto fundamental sobre as teses da história e a ditadura brasileira, chama-se “Esquecer o passado?”
4 Esta é uma tese que Freud elabora para pensar tanto a piora quanto a melhora dos sintomas a partir da lembrança na clínica.
5 Relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) entregue à presidenta Dilma Rousseff em 10/12/2014.

Referências 

Recordar, repetir e elaborar, Sigmund Freud
As teses sobre o conceito de história, Walter Benjamin
Limiar, Aura e Rememoração, Jeanne Marie Gagnebin
Da utilidade a do inconveniente da história para a vida, Friedrich Nietzsche
Eles não usam black-tie, Leon Hirszman


Como citar

LAURO, Rafael. O que se descobre entre corpos. Razão Inadequada, 2024. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2024/21/10/escovar-a-historia-a-contrapelo>. Acesso em: [inserir dia, mês e ano].
Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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