Ninguém pode negar a elegância geométrica do triângulo. Um ponto não é grande coisa. Dois pontos ligados fazem uma reta, mas ela ainda não tem muita graça. Agora, acrescente um terceiro e, voilà, temos uma superfície. O triângulo inventa o espaço, e isso não é pouco. A infinidade de pontos de uma linha é insignificante perto da magistral figura de três pontos, três lados e três ângulos. Essa tríade tem nos encantado há milênios, sua eficácia simbólica não pode ser menosprezada. O quadrado até que é interessante, mas não é à toa que ele se tornou uma gíria para falar de uma pessoa careta. Ele não tem o mesmo balanço, talvez seja culpa de seus ângulos obrigatoriamente retos. O triângulo, por sua vez, possui três ângulos que, ao interagirem, multiplicam sua forma em – adivinhem – três!
Temos morrido de amores pelos triângulos, metafórica, literária e literalmente. A triangulação amorosa possui uma vasta história na literatura, que remonta ao fragmento 31 de Safo de Lesbos (1): a mulher, que escreve, observa sua amada conversando com outro homem, mas a poesia fala deste homem, que aparece à poeta tão belo quanto um deus, apenas pela sorte de ter despejado sobre si o olhar de sua amada. Três personagens, portanto, e a trama de um mistério a que tantos de nós leitores, encantados ao longo de milênios, temos nos dedicado a desvendar. Que estranha paixão é essa que se move no peito da amante a partir do amor de sua amada?
Encontramos muitas outras imagens da triangulação amorosa na história (2), tão diversas quanto se pode imaginar. No entanto, conforme os costumes burgueses se assentaram em um modo de vida e se espalharam pelos quatro cantos do mundo, essa multiplicidade de narrativas foi sendo suprimida em uma só: a trágica. Mesmo hoje, quando um conjunto de vozes divergentes, dissonantes e dissidentes se levanta para fazer a crítica da monogamia, temos uma enorme dificuldade de encontrar representações positivas do triângulo amoroso. Aliás, parando para pensar, constatamos rapidamente que a única imagem dominante da triangulação para além da tragédia vem da fantasia sexual objetificante dos homens cis, o que é um tanto deprimente. Para além dela, encontramos apenas o senso comum de um desastre.
O que é interessante, para dizer o mínimo, é que o triângulo amoroso se tornou maldito, mas jamais deixou de existir. Pelo contrário, podemos dizer que os terceiros aparecem para fazer tudo funcionar: um bom amante nunca foi dispensável, seja para trazer o tesão para o casamento que esfriou, seja para criar a tensão que faz a história funcionar. Esse é o motivo pelo qual a maioria das relações amorosas, fictícias ou não, envolvem terceiros. Eles se encontram no passado, quando os pretendentes estavam em disputa; no presente, como amantes mesmo; mas também estão no futuro, afinal a paixão não demora a bater na porta, ainda que não tenha sido convidada. Seja como for, o amante é o terceiro elemento que, apesar de oculto, cumpre uma função que ajuda a sustentar a forma casal.
Todas essas histórias nos são bastante familiares, vamos tomar como exemplo a mais conhecida delas. Tudo ia bem entre os pombinhos quando, de repente, o intruso apareceu no ninho. Então, o amor começa a arder em segredo, às vezes morando na cabeça de alguém, às vezes consumado nos cantos escuros. Até que chega o dia de tudo vir às claras, é o clímax, uma grande cena de violência e sofrimento. A mulher traída chora, pensa em se matar, enquanto o homem diz: “não é o que você está pensando”. Ou então, a mulher apaixonada chora, pede desculpas, e o corno enfurecido mata a esposa e o amante – entre algumas outras enfadonhas variações do mesmo enredo. Alguns deles até têm um final, digamos, feliz, mas para que isso aconteça algum amor precisa acabar, ou seja, enquanto houver um triângulo, tudo o que se pode esperar é que a história continue até ele se desfazer.
Encontramos esses clichês aos montes, e parece que a maioria das pessoas ainda não se cansou deles. É natural, essas narrativas têm uma função social: delimitar um lugar em nosso imaginário para um conflito extremamente comum. A concepção trágica do triângulo responde a demanda por uma narrativa – e ela nos é oferecida prontamente. Assim, todos os que se veem na situação de múltiplas relações podem dormir mais tranquilos, porque uma tragédia conhecida é menos pior do que um amor imprevisível. Deixar a paixão correr solta é um perigo que pouca gente está disposta a correr, principalmente quando isso coloca em risco uma relação anterior. Parece que, em geral, as pessoas preferem uma tristeza certa, controlada, do que a angústia difusa que advém dos conflitos sem imagem, principalmente no campo dos amores múltiplos e coexistentes.
O que as tragédias triangulares nos ensinam? Ora, que não existe opção entre trair ou terminar. Apenas um caminho, uma linha reta, nada de ângulos. No caso da traição, o cuidado é todo destinado à organização do segredo, para minimizar a chance de dar errado, e manter assim enquanto der. Se tudo correr como o esperado, a amante só será descoberta no funeral do marido. Já no caso do término, a questão que se coloca é a do cálculo, fundamental para descobrir qual das relações promete mais. Como não há uma unidade de medida para o amor, a situação acaba levando a uma escolha impossível, o que causa uma tristeza que muitas vezes acaba com as duas relações. Em ambos os casos, o triângulo aparece apenas como o fantasma que anuncia a tragédia.
Quando a situação do triângulo amoroso se anuncia, nossa primeira reação é pensar que algum dos três vai se dar mal. Isso, no entanto, não deriva de nenhuma coleção empírica de experiências, ao contrário, isso é uma consequência da nossa falta de representação para a alegria-mútua na triangulação. Quais são os filmes, quais são as músicas, quais são os livros, quais são as novelas que trazem o lado bonito dessas histórias? Existe uma ou outra, mas encontrá-las é desafiador, uma verdadeira tarefa de pesquisador – e isso significa que elas estão bem longe de ter uma influência real na maneira como pensamos a questão socialmente.
Não é necessário enfeitar o discurso com mentiras, dizendo que a triangulação na verdade é maravilhosa, que fomos enganados por problemas inventados. Não estamos aqui para romantizar o triângulo, levantar nenhuma bandeira nem defender a causa dos não monogâmicos oprimidos. Não se trata disso, trata-se de questionar a narrativa habitual para que não sejamos compulsoriamente conduzidos por ela quando nos depararmos com estas situações em nossas relações. Temos cada vez mais recursos para quebrar essas imagens opacas. Um caminho, por exemplo, é buscar referências em culturas não europeias e na grande variedade de maneiras de pensar o amor. Não é difícil de encontrar essas informações. No entanto, parece que nenhuma pesquisa científica será suficiente para modificar a maneira como sentimos coletivamente estas questões. Mais do que informação, nós precisamos compartilhar vivências a ponto de modificar os componentes que estruturam a narrativa convencional da triangulação: exclusividade, competição e substituição.
É um longo caminho, que apenas começou. Fato é que ainda estamos todos bastante limitados pela narrativa da tragédia. Dado esse estreitamento do nosso imaginário, quem se entrega ao risco de levar as relações triangulares para além das respostas tradicionais acaba sofrendo da falta de referências e, por consequência, de repertório para lidar com os conflitos. Onde estão as representações contemporâneas dos amores múltiplos, coexistentes e alegres? Essas relações certamente foram, são e serão vividas, mas não temos sido capazes de fabricar imagens à sua altura. Enquanto essa falta perdurar, teremos todos menos recursos para imaginar outros finais para as nossas histórias, e sofreremos disso. De toda maneira, seguimos tentando inventar um outro mundo para os amores, com tudo o que temos à nossa disposição. Se a inspiração vier a faltar, convém lembrar que ao triângulo não falta elegância.
1 Parece-me ser par dos deuses ele,
o homem, que oposto a ti
senta e de perto tua doce fa-
la escuta,
e tua risada atraente. Isso, certo,
no meu peito atordoa meu coração;
pois quando te vejo por um instante,
então fa-
lar não posso mais,
mas se quebra minha língua, e ligeiro
fogo de pronto corre sob minha pele,
e nada veem meus olhos, e zum-
bem meus ouvidos,
e água escorre de mim, e um tremor
de todo me toma, e mais verde que a relva
estou, e bem perto de estar morta
pareço eu mesma.
Mas tudo é suportável, já que mesmo um pobre…
– Safo, Fragmento 31, Trad. Giuliana Ragusa
2 Platão também fez sua homenagem aos triângulos. No Banquete, Sócrates fala do perigo de um amor que toma apenas a beleza do amante como objeto e acaba perdendo a oportunidade de olhar para a infinita beleza que paira sobre o mundo (2). Para ele, o amor é uma chance de elevar a vida, mas essa elevação depende de três degraus que os apaixonados têm bastante dificuldade de escalar: o primeiro só acontece, a beleza repentinamente no amado; o segundo já não é fácil, admitir que a mesma beleza se encontra também em outros corpos; agora, o terceiro exige um grande esforço, o próprio mundo em seu aparecer é fruto de uma beleza infinita ainda que nos apareça apenas em lampejos. Nesse discurso psicagógico, a intenção do filósofo é nos oferecer uma medida para a paixão, nos prevenindo de seu perigo, que é o de acabar escravos da beleza da pessoa amada. Em outras palavras, o apaixonado, endoidecido por alguém, precisa aprender a triangular para permanecer aberto ao mundo e encontrar razão em sua loucura.