Uma nervura numa trama viva. Cada um de nós, uma fibra. A vida, um espasmo. São imagens que me ocorrem enquanto tento compreender a natureza conectiva de nossa existência. Um tecido de moléculas provisoriamente reunidas, corpo; uma teia de ideias experimentadas em fluxo, mente; matéria e pensamento, aliás, difíceis de distinguir. Um bebê cresce como um broto se encomprida em tronco, fazendo milhões de novas conexões num punhado de anos. Sua existência é um delírio constante, nenhuma experiência é estável, nada foi antevisto. A repetição ampara seu crescimento, forma sua malha, e o protege do caos. Com o amadurecimento, acontece uma domesticação da experiência: necessária, mas também enfadonha. O adulto é um sistema organizado, mas ele pode reencontrar, numa bem aventurada alucinação, a infância da percepção.
A associação é um conceito que dá conta de grande parte do que fazemos. Das sínteses proteicas às ideias complexas, nós somos uma maquinação constante, da qual depende nossa existência de parte no todo. Não há vida que persista sem buscar ligações ou, para dizer melhor, tudo o que vive é um prolongamento do mesmo tecido, que em si se modifica, sem nunca se apartar. Poderíamos imaginar cada organismo como um tear que, por mais criativo que seja, está abastecido dos mesmos fios que o resto. Os nós podem ser singulares – os desenhos de sua tapeçaria, decerto magníficos -, mas a substância de que são feitos é comum.
Por outro lado, não parece correto dizer que nossa natureza conectiva é uma atividade. Está mais para uma necessidade, que nos acontece a despeito de escolha. A experiência se apresenta de determinada maneira, e logo nos acontece uma síntese: quase infartamos ao ouvir o trovão seguir seu raio uma primeira vez; a partir da repetição, os fenômenos começam a se ligar; em algum momento, nós nos tornamos capazes de prever, até mesmo entediados, que uma coisa sucede a outra. Nós não inventamos a repetição, mas dela formamos uma ideia, e o que é mais interessante: a assustadora aleatoriedade do início se transforma numa previsão tranquila. Depois de expostos reiteradas vezes à tempestade, vemos a lampejo e já esperamos o estrondo – o evento retorna, mas não o acontecimento.
Na maioria dos dias, encontrar uma árvore pelo caminho não é nada digno de nota. Não costuma constar nos diários. Já vimos tantas, que aquela passa como outra qualquer. No entanto, aquela árvore, qualquer árvore, não é algo assim tão banal. Nem uma pedra é. Nada é. Tudo o que olhamos bem de perto é um delírio. Um grão de experiência contém mistério o suficiente para explodir a razão. O hábito organiza os fenômenos, e funciona como uma defesa contra tal intensidade: embriagados da experiência pura, voltaríamos à condição de bebês, incapazes de dar um só passo, paralisados pelo desfile delirante das coisas reais.
É evidente, portanto, que nossa natureza associativa não é em si um problema. Por causa dela, somos funcionais: caminhamos por entre as árvores sem atraso, comemos a fruta sem fascínio, dormimos e esquecemos os sonhos estranhos. Não sobreviveríamos sem o hábito, mas será que sobreviver é o bastante? Pouco a pouco, a experiência definha em rotina, e o espantoso fato de estarmos vivos perde a vivacidade. Ao cumprir nossa tendência maquinal, nos tornamos uma engrenagem, uma roda dentada que mastiga tudo, e gira sem parar, com regularidade tal, que já não vê mais o que a faz girar.
Há muitos caminhos para voltar a ver uma árvore. Percebo que a maneira como estou construindo este texto talvez não seja suficiente. Eu mesmo não posso evitar minhas repetições. Escrevo a percorrer trilhas gastas, que fiz e refiz ao longo dos anos, é quase inevitável. Aposto no quase, nele assumo meus riscos. O que acontece com este texto se, agora mesmo, eu der um trago nesta flor enrolada que está apoiada no cinzeiro? Antes preciso ser sincero: eu não escrevo chapado, embora muitas das ideias me surjam durante a brisa. Dito isso, acho que podemos ir adiante com esta experimentação metaformal. Acendi o baseado, dei alguns tragos doces enquanto passeava pela casa, espalhei a fumaça como um incenso, descansei uns minutos sob o sol, e agora sigo.
Eu estava falando sobre ver uma árvore. Não é fácil, mas nós somos inventivos: já traduzimos as plantas para diversas linguagens. Outro dia vi no cinema uma ginko biloba a protagonizar um filme, chamado Amiga Silenciosa (um jeito bonito de se referir a uma árvore, convenhamos). Três histórias humanas de séculos diferentes aconteceram em torno dela. Uma bela artimanha da diretora foi guardar para a última cena a imagem da criatura inteira: “Eu também já amei uma árvore”, foi o que pensei, um tanto emocionado. Não, eu não estava chapado. Ali a arte era alucinógena o suficiente. Como eu disse, há muitos caminhos para ver uma árvore. No entanto, comecei este texto para fazer o elogio das plantas alucinógenas. Vamos a ele.
A vida animal não seria possível sem a vegetal. Elas estão, claro, associadas. De diversas maneiras. Há alguns milênios, nossa espécie primata tem recorrido às folhas, flores, cipós e raízes, buscando um efeito específico nelas: o avivamento da experiência. E elas têm sido muito generosas, derramando mel tóxico em nossas bocas, queimando vapores mágicos em nossos pulmões, emprestando perspectivas místicas aos nossos olhos.
Fui até a janela e olhei cada uma das árvores que me rodeiam. Não são muitas, eu vivo na cidade. Mas tenho a sorte de contar com algumas dessas companheiras. Como elas são diferentes. Sinto que elas me olham e, quando eu devolvo a demora no olhar, de alguma forma me comunico com elas. Opa, aquela comprida lá do fundo me saúda. A balançante do último texto continua lá – adivinhem – balançando. Olhando sua copa, vejo sob a sombra uma dracena que a espeta, como um amante a levantar as saias. Deve ser bom.
Se, depois de tomar contato repetidas vezes com um fenômeno, o entendimento o transforma em ideia pálida, parece legítimo que busquemos um contrapeso. Estilhaçar com um golpe a imagem opaca que substituiu a coisa viva. Quebrá-la, numa martelada de letras, numa estocada de cores, num desabamento de sons, e também pela distorção psicoativa das nossas lentes. São maneiras de voltar às primeiras impressões. Já lhes ocorreu que às vezes estamos a um trago de outro mundo? É exagero, eu sei, mas tem algum fragmento de verdade escondido no meio dessa frase.
Sugiro que o procurem por si mesmos. Para ajudar, deixo uma receitinha, um ritual que me apraz:
Primeiro, escolha um dia tranquilo (o que não significa livre de angústias, senão corre o risco de ser nunca). Segundo, busque um lugar calmo (seja lá o que isso significa para você). Terceiro, esteja em boa companhia (ainda que seja apenas a sua). Quarto, encontre a boa dose (que é talvez o passo mais difícil até aqui). Quinto, coloque um disco que gosta; ou um filme bem recomendado; ou tome um banho de mar ou de sol ou de chuva ou de cachoeira ou de chuveiro mesmo; ou encoste delicadamente os lábios sobre a pele de alguém; ou escreva o que lhe passar pela cabeça; ou converse com a primeira pessoa acolhedora que lhe aparecer pela frente; ou expresse numa mensagem de áudio o carinho que a lembrança te trouxe; ou veja uma árvore.
Nem sempre é só prazer. A única garantia que posso lhes dar é que tem feito sentido para mim. Retornar à infância da percepção traz um tanto de desconhecido para dentro. A bem aventurada alucinação é um vento que sopra cortinas aparentemente transparentes: de repente vejo o que estava à minha frente, mas de um jeito novo. Assim, retorno ao começo, engatinho por entre sílabas, recolho impressões espalhadas, enuncio ideias desconexas e, com um pouco de sorte, me religo às coisas. Tomo ciência da grandeza de existir junto de uma majestade feita de folhas.
Referências
Hume, Tratado da Natureza Humana
Deleuze, Empirismo e Subjetividade
Flores do Bem, Sidarta Ribeiro
Silent Friend, Ildikó Enyedi
Jabberwocky, Jan Svankmajer
Variations on a melancholy theme, Brad Mehldau






