Um olhar um pouco mais atento ao currículo das nossas escolas perceberá rapidamente que, no seu conteúdo declarado, ele é resultado de uma dupla-herança triste (veja aqui) e, em sua porção oculta, é autoridade velada (veja aqui). Nos textos anteriores, realizamos rapidamente estas duas críticas. Chegamos ao momento de pensar ideias combativas e resistentes ao modelo escolar de educação. Não basta criticar, nossa carência é de propostas.
Não é de toda inovadora a ideia de relacionar Deleuze e educação, aliás, há um documentário brasileiro que explora bem a questão. O filósofo não dedicou um livro à educação, mas passou a maior parte de sua vida como professor. Felizmente, temos acesso a algumas dessas aulas através de registros textuais e auditivos. Se ele não desenvolveu propriamente uma pedagogia, nada impede que utilizemos sua filosofia para tal. O que nos impulsiona é o fato de que Deleuze não pensava na sua filosofia como a fundação de uma escola, mas como um movimento: suas ideias são correntes, seus conceitos são ferramentas passíveis de se manejar das mais variadas maneiras.
“Uma aula quer dizer momentos de inspiração, senão não quer dizer nada”
– Gilles Deleuze, Abecedário, P de Professor.
É neste sentido que pensamos em utilizar o conceito de Rizoma para repensar o currículo. Atualmente, enxergamos nele uma rigidez muito semelhante à construção arbórea e cartesiana do conhecimento, não apenas nos conteúdos, mas na estrutura, na organização. O principal problema do currículo organizado como árvore é a assunção de que há uma hierarquia de interesses, de que há uma raiz sólida que sustenta toda a formação, de que a forma pela qual se aprende passa necessariamente por alguns pontos fundamentais, de que os tão saborosos frutos só resultam de um caule que sustente o seu peso. Ah! Que contradição – não queremos pensar no peso, mas na leveza.
Toda vez que uma multiplicidade se encontra presa numa estrutura, seu crescimento é compensado por uma redução das leis de combinação”
– Deleuze & Guattari, Mil Platôs I
Pressupor a verticalidade no ensino é desconsiderar a maior necessidade de qualquer aprendizado: o interesse. Não há interesse em ser designado para algum estudo, há submissão. Os três erros capitais: definir o quê, como e quando estudar. Basicamente tudo o que nosso currículo faz. Mas o que resta do currículo se eliminamos isto? Quais podem ser suas diretrizes?
Na botânica, o rizoma é um tipo de caule que cresce horizontalmente, um emaranhado de linhas que pouco diferem das raízes. O resultado não é uma forma fechada e arbórea, mas superficial e continuada. Deleuze e Guattari desenvolveram no primeiro volume de Mil Platôs, um conceito filosófico de rizoma (leia mais aqui), do qual eles derivaram uma série de princípios. Pensemos apenas os três primeiros para ter uma primeira ideia do que seria um currículo baseado nesse conceito…
Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e… e… e…”
– Deleuze & Guattari, Mil Platôs I
O primeiro e segundo princípios são: conexão e heterogeneidade. Tudo está em contato. Não existem impedimentos significativos entre pessoas, assuntos e espaços. “Qualquer ponto do rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo”. Ao contrário da árvore, não há um ponto central que sustenta todo o resto, um centro gravitacional que estrutura todo o organismo. Há diferentes investimentos para todos os lados, não há um sentido. Se a interdisciplinaridade é o termo da moda nas escolas, aqui ela seria redundante. Não há algo como “disciplinas”, há contato entre tudo, o diálogo entre todas as áreas não é só possível, como é um resultado direto deste tipo de currículo.
O terceiro é o da multiplicidade. “Uma multiplicidade não tem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões, que não podem crescer sem mudar de natureza”. O fim último de qualquer investimento educacional nunca deve ser a unidade. A unidade é a derradeira aposta na forma. O rizoma não tem nenhuma forma. A escola não forma nada. O rizoma é produção de linhas (de intensidade, de fuga…). A educação potencializa – só essa é sua função: tornar cada um mais forte para agir, mais capaz de entender suas próprias vontades, mais conhecedor das relações e essências que o rodeiam. Educar para a transformação e não para a conservação, pois a própria condição da multiplicidade é o movimento, que tudo altera, tudo muda.
“A árvore ou a raiz inspiram uma triste imagem do pensamento que não pára de imitar o múltiplo a partir de uma unidade superior, de centro ou de segmento (…).”
– Deleuze & Guattari, Mil Platôs I
Um projeto educacional como este necessita de um grande recomeço. Embora possamos aplicá-lo em qualquer situação, um currículo rizomático precisa de um lugar novo, de um espaço que ainda não existe, ou talvez esteja sendo criado. Precisa que deixemos de ignorar a matéria mesma de toda educação, que é o aluno. Exige, além disso, que aquele que se nomeia “educador” esteja de fato interessado pelo que diz, pelo que ouve e pelo que vive. A educação há de causar antes de tudo algum entusiasmo…
o currículo rizomático encaixaria muito bem no ensino superior também, na minha opinião
definitivamente.
Não sei se vocês já tiveram a oportunidade de conhecer o trabalho de um pedagogo brasileiro chamado Alfredo Veiga-Neto…O trabalho dele sobre a estrutura curricular e a pós-modernidade é bastante interessante e converge com alguns dos textos foucaultianos dessa página. Vale a pena dar uma olhada!
Não conhecemos … Muito obrigado pela indicação!
Olá Rafael você indica algum documentário sobre o tema! Obrigada!
Zilá,
tem um doc brasileiro sobre Deleuze e a Educação! Dá uma procurada no Youtube!
Abs!
Esse link do documentário brasileiro sobre Deleuze e a educação está fora de ar por reivindicação dos direitos autorais, teria outro link para acesso?
Um abraço!