O Carcerário nasce quando percebemos que é mais vantajoso vigiar do que punir. Não precisamos mais do carrasco encapuzado pronto para torturar sua vítima em um evento espetacular. Em vez de cortar cabeças, injetamos hábitos e pensamentos. O carcerário está agora presente para garantir que isso aconteça.
Quem é a figura que cria e mantém a sujeição? O Carcerário! Dono de todas as técnicas disciplinares é ele quem fabrica indivíduos submissos. Quem é ele, onde está? Se o localizássemos, poderíamos afastá-lo desta horrível função. Eis o problema: o Carcerário é um dos personagens de Foucault que mais se disseminou pela sociedade. Ele é cada um de nós!
Nele encontramos o pai de família, o vizinho, o síndico do prédio, o policial, o capitão do exército, o chefe, o gerente, o psicólogo, o psiquiatra, o professor, o bedel, o diretor da escola, o padre, o bispo da igreja, o juiz da corte, o presidente. Por todos os lados é possível encontrar, encarnado, a personificação do Carcerário. A carapuça serve e muito bem em todas estas figuras.
O Carcerário é como o responsável pela esteira rolante de uma fábrica. A roda não pode parar de girar, há pressa, promessas, demandas, pedidos, pendências. Todo cuidado é pouco. A inserção do cárcere na sociedade explica e justifica sua presença para o bom funcionamento e bom andamento do cotidiano. Enquanto se produz, ensina-se a produzir mais e melhor; enquanto se vigia, aprende-se a vigiar com mais eficiência. Ele faz a passagem do olhar para a punição. Tudo deve estar no lugar para maximizar lucros e condutas. Um parafuso apertado para não quebrar a esteira de produção e um olhar cerrado em cima do operário para evitar conversas paralelas e preguiça. O nascimento das ciências humanas está próximo da cabine dos vigias de fábrica, dos confessionários da igreja, dos bedéis de colégio, do divã dos psicanalistas.
O carcerário é o representante maior de toda uma nova forma de pensar, produzir e agir. Mentes e corpos são tomados pelo poder, constantemente afinados, regulados e medidos. Mas atenção, o carcerário de hoje é também o vigiado de amanhã. Basta cruzar a rua, virar a esquina, tirar o uniforme e pronto, agora é hora de obedecer. O jogo de polícia e ladrão nunca foi tão confuso, tão difuso, tão complexo. Não há mais lado de fora, todos estão neste jogo, o indivíduo sempre está enquadrado, de um jeito ou de outro, na lei e na disciplina, seja batendo o ponto ao chegar no trabalho ou pegando o metrô ao fim do dia.
Desta forma, nos acostumamos. Nossa subjetividade moderna, e em crise, é a do Carcerário/Delinquente, o Corpo-Dócil/Criminoso. Vivemos nessa contínua passagem deste para aquele. Condenamos e ao mesmo tempo temos medo de sermos pegos no flagra. Vivemos a tensão daquele que quer ser um bom cidadão, mas é constantemente convidado a cometer pequenos delitos.
O olho do poder nos observa e hipnotiza. Afundamos cada vez mais em instituições de vigilância sem perceber. A prisão apenas continua um processo de disciplinarização que começou muito antes. Nos acostumamos com a punição, a observação, a sanção, a reprovação. Assinamos contratos que queremos burlar, fazemos promessas que queremos quebrar. Todos se tornam juízes e réus.
O indivíduo penalizável, punível, não é mais aquele que foge do poder, mas aquele que é cada vez mais tragado para dentro da máquina carcerária que se ergueu em torno da produção e regulação da vida. A criminalidade não vem de fora, ela não invade o sistema coeso e ordenado, ela é fruto de uma acumulação de coerções disciplinares. Passa-se do berçário à prisão gradualmente, quase imperceptivelmente o próprio berçário já reproduz sua lógica.
Entre a última das instituições de ‘adestramento’ onde a pessoa é recolhida para evitar a prisão, e a prisão onde ela é enviada depois de uma infração caracterizada, a diferença é mal e mal perceptível (e deve ser)”
– Foucault, Vigiar e Punir
Resultado: nada se perde, tudo se transforma. Todos somos convidados a julgar e sermos julgados. A observação perpétua, o olho de deus, a torre do vigia, o Panóptico, garantem que cada indivíduo terá seu lugar dentro do arquipélago carcerário. Na sociedade disciplinar, o corpo está submetido, torna-se dócil: tabela de produtividade, lista de atividades, inventários, relatórios, prontuários, notas, tudo isso garante que o corpo se torne devidamente assujeitado.
No fim das contas, aceitamos, terminamos por aceitar com naturalidade este mundo coercitivo. Somos seduzidos pela coerção, convidados a condenar também. Afinal, o carcerário está em toda parte, inclusive dentro de nós, e exerce o papel de dominação contínua. É desta forma que nasce o homem moderno.
Mergulhados no arquipélago, carcerário somos constantemente medidos, medicados, cutucados, questionados, examinados, investigados, criados. Eis nossa subjetividade: sujeitos dóceis que se sentem criminosos; sujeitos obedientes que não perdem a oportunidade de exercer o poder coercitivo no outro. Neste mundo de carcerários, todos nós estamos presos.
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