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Homens preparatórios – Eu saúdo todos os sinais de que se aproxima uma época mais viril, guerreira, que voltará a honrar acima de tudo a valentia! Ela deve abrir caminho para uma época ainda superior e juntar as forças de que esta precisará – a época que levará heroísmo para o conhecimento e travará guerras em nome dos pensamentos e das consequências deles […] homens interiormente inclinados a buscar, em todas as coisas, o que nela deve ser superado

– Nietzsche, Gaia Ciência, § 283

Primeiramente o Espírito Livre encontra na ciência forças para questionar todos os valores. Ele se apropria do frio método científico para não dar nada como certo e pôr abaixo todos os valores metafísicos que até agora o guiaram. A ciência é impetuosa neste sentido: “De onde você tirou esta ideia? Que provas você tem? Qual foi seu método para encontrar esta verdade? O quanto ela vale?“. Poucos valores resistem…

Isso torna o espírito livre frio por natureza, ele quer e precisa momentaneamente habitar o topo das montanhas, onde o ar é frio. De lá ele pode ver que as certezas são castelos construídos na areia, são humanas, demasiado humanas. Do alto de seu ceticismo o tempo se torna perigoso, mas a vista é privilegiada e se torna um prazer poder ver todos os ídolos afundarem, racharem, afinal, eles já estavam podres por dentro. É possível viver neste ar rarefeito das alturas? A crueza do ceticismo deixa a pele do espírito livre mais dura, mais resistente, aguça o seu olhar. Mas até mesmo o ceticismo é um estado transitório!

Como o espírito livre pode voltar a conhecer, a erigir valores? Só há um meio: experimentando! Fazer de si um experimento é a única forma de conquistar a força novamente. Uma via nova, porque nunca nos foi deixado experimentar; um caminho inovador, porque não passa por mediações metafísicas nem tradicionais! O alicerce do conhecimento é a experimentação: tomar a si próprio, seu corpo, como laboratório de testes! Até onde podemos ir? Até onde queremos ir?

Com a conquista do conhecimento, o gélido estado do ceticismo é abandonado e encontra-se aqui uma nova paixão! A ciência se transforma-se em paixão do conhecimento, finalidade da existência! Depois deste longo processo, a vida agora pode tornar-se um meio de conhecimento e o mais potente deles! Nietzsche nos guia por um tortuoso caminho, depois de vermos como os valores brotam de um solo demasiadamente humano, depois de suportar até a chegada da aurora, estamos finalmente preparados para uma Gaia Ciência!

Redimido do ceticismo — A: “Outros emergem de um ceticismo moral universal maldispostos e fracos, abatidos, corroídos por vermes, quase consumidos — eu, porém, mais corajoso e saudável do que nunca, de instintos reconquistados. Onde sopra um vento agudo, o mar se encrespa e não é pouco o perigo a superar, ali me sinto bem. Verme não me tornei, embora muitas vezes tivesse de trabalhar e escavar como um verme”. — B: “Você parou de ser cético! Pois você nega!” — A: “E com isso aprendi novamente a dizer Sim”

– Nietzsche, Aurora, §477

– Andrea Pramuk

Nietzsche ensina que perspectiva e conhecimento estão diretamente relacionados. A experimentação permitiu novos conhecimentos, mais vivos, mais audazes, mais genuínos. O conhecimento deixou de ser a conquista do desconhecido pelo conhecido e passou a ser o flerte do homem potente para o abismo.

O conhecimento não existe para dominar o desconhecido, que é sempre visto neste caso como perigoso e monstruoso. O conhecimento é uma aliança entre as forças que nos constituem e aquilo que vem de fora. A potência do fora é usada como trampolim para as forças que nos constituem! O conhecimento agora só pode fundar suas bases na Vontade de Potência, criadora e expansiva.

Me perguntei: o que entende mesmo o povo por ‘conhecimento’? o que quer ele, quando quer ‘conhecimento’? Não mais do que isso: algo estranho deve ser remetido a algo conhecido […] Não seria o instinto do medo que nos faz conhecer? E o júbilo dos que conhecem não seria precisamente o júbilo do sentimento de segurança reconquistado?”

– Nietzsche, Gaia Ciência, §355

O conhecimento como grande desafio, como produto de almas nobres, como questão de saúde e de doença! Nietzsche não se deixaria capturar pelas antigas descrições platônicas: o espírito livre não sai em busca do verdadeiro, do certo, do fixo, sua busca é pelo potente! E a Vontade de Potência sempre se relaciona com múltiplas perspectivas. Ou seja, a própria doença aqui permite uma outra perspectiva de si e da vida. É neste sentido que Nietzsche diz que é possível brotar a paixão do conhecimento em virtude de um momento de grande convalescença! Aqui encontramos o espírito livre que sai da uma crise e encontra-se revigorado! Seus instintos foram reconquistados! Ah, ele não apenas está bem, mas melhor, mais forte!

Permaneceria aberta a grande questão de saber se podemos prescindir da doença, até para o desenvolvimento de nossa virtude, e se a nossa avidez de conhecimento e autoconhecimento não necessitaria tanto da alma doente quando da sadia; em suma, se a exclusiva vontade de saúde não seria um preconceito, uma covardia e talvez um quê de refinado barbarismo e retrocesso”

– Nietzsche, Gaia Ciência, §120

O conhecimento para Nietzsche nunca estará relacionado com o conhecimento das coisas em si, ele será sempre uma superação! O corpo, e com ele a alma, conhecem ao experimentarem os mais variados estados! A doença convém à alma forte porque desta condição de martírio pode-se retirar um aprendizado, desde que o entendimento não se turve pela dor.

Depois da crítica dos valores metafísicos, depois do ceticismo frio, depois dos experimentos, o homem só poderia ser grato, pelos frutos que colhe agora na paixão do conhecimento. Uma leveza que nunca antes havia experimentado! Superou-se aqui a ordenação moral do mundo. O corpo, aberto a experimentações abriu trilhas que o homem comum jamais conseguiria trilhar. A metafísica foi destituída e o Espírito Livre se sente mais leve.

Não há mais castigos divinos!, culpas!, castigos!, ressentimentos! Ah, podemos respirar, A vontade de verdade era uma roupa apertada demais para permitir nossos movimentos mais espontâneos. Pouco a pouco, a seriedade, a gravidade, tornavam a vontade de verdade um Ditadura da Verdade! Eliminando as singularidades, afastando as perspectivas e suprimindo a Vontade de Potência que o tempo todo procura diferir de si.

Nós readquirimos a boa coragem de errar, tentar, aceitar provisoriamente — nada é assim tão importante! —, e justamente por isso indivíduos e gerações podem hoje vislumbrar tarefas que teriam parecido, em épocas anteriores, insânia e brincadeira com o céu e o inferno. Podemos experimentar conosco mesmos! Sim, a humanidade pode fazer isso!”

– Nietzsche, Aurora, §501

Há aqui um considerável crescimento espiritual: O que quer esta humanidade que pode finalmente se experimentar? Ela quer conhecer a si mesma? Não, diz Nietzsche, ela quer ir para além de si! O conhecimento potente se pergunta o tempo todo: “Que importa o eu? que importa a humanidade?”,  a paixão do conhecimento leva o homem para além do homem!

Mas a supressão do juízo, da razão, não desembocam em um amoralismo, nem em uma irracionalidade. Auto-conhecimento e auto-formação não desembocam no niilismo passivo. Muito pelo contrário! O que acontece aqui é uma reformulação da própria razão. Nós, claro, chamaríamos de uma Razão Inadequada, uma razão estética. Neste estado o homem aprende uma nova irresponsabilidade, uma inocente auto-formação! Um impulso para a distinção! Um mudar de pele! Para tornar-se outro quando necessário!

Este homem de conhecimento não está em busca de uma sólida reputação! Por acaso os grandes pensadores devem manter-se fiéis a si mesmos? Por acaso Nietzsche o fez? E o que podemos dizer de Deleuze e Foucault? Decepcionar torna-se um prazer, decepcionar-se também! O homem de conhecimento não pode permanecer o mesmo e, cedo ou tarde, suas vivências o farão mudar de opinião! E não poderia ser diferente depois de tantos experimentos pelos quais passou! A sociedade precisa de homens fiéis a si mesmos, que sejam confiáveis, ou melhor, impotentes, incapazes de adquirir outros pontos de vista!

Aí é condenada e difamada precisamente a disposição que tem o homem do conhecimento para, de maneira intrépida, declarar-se a qualquer momento contra a sua opinião prévia e ser desconfiado em relação a tudo o que em nós quer se tornar sólido”

– Nietzsche, Gaia Ciência, §296

Voltemos à metáfora do deserto! O homem precisa partir, para encontrar a si mesmo, ele precisa distanciar-se. Precisa olhar a cidade de longe, ver seus edifícios morais. Aprendemos as sentenças e as opiniões dos outros antes das nossas, ainda assim, isso não significa que devemos estar cativos destas opiniões por toda a vida.

Quando povoa seu deserto, o homem pode retornar à cidade que antes lhe dava náuseas. O Espírito Livre encontrou sua própria fonte de valores. Aqui o conhecimento se torna parte da vida, está implicado nela, não é mais guia, mandamento. São regras de passagem. A luta foi grande, no deserto o Espírito Livre enfrentou os seus demônios e se perguntou, até que ponto minha verdade suporta ser incorporada?

O conhecimento se tornou então parte da vida mesmo e, enquanto vida, um poder em contínuo crescimento: até que os conhecimentos e os antiquíssimos erros fundamentais acabaram por se chocar, os dois sendo vida, os dois sendo poder, os dois no mesmo homem. O pensador, eis agora o ser no qual o impulso para a verdade e os erros conservadores da via travam sua primeira luta, depois que também o impulso à verdade provou ser um poder conservador da vida. Ante a importância dessa luta, todo o resto é indiferente: a derradeira questão sobre as condições da vida é colocada, e faz-se a primeira tentativa de responder a essa questão com o experimento. Até que ponto a verdade suporta ser incorporada? – eis a questão, eis o experimento”

– Nietzsche, Gaia Ciência, §110

Afinal, é claro que nos conheceremos melhor ao passarmos por situações que nos exijam pensar diferentemente. Nietzsche insiste que situações de perigo e doença nos dão diferentes perspectivas. O auto-conhecimento não está nas situações de conforto e segurança. Queremos passar por essas galerias de nós mesmos! Percorrer nossos interiores, nossos desertos, nossos jardins, nossos espelhos, nos perscrutarmos para encontrar algo novo! Mas não é na intenção de renunciar ao mundo como um asceta, não quer observar de longe. O homem de conhecimento é um homem prático, mas que possui uma independência e uma maturidade tal que sua atividade não é escravidão, não é fuga de si.

Chegamos ao ponto tão esperado onde ocorre a síntese entre ciência e arte, conhecimento e estética. Nasce finalmente uma ética! O mundo passa a ser belo novamente, naquilo que é necessário. Quantos foram capazes de cuidar de si ao ponto de reduzir a moral à estética, eliminando o peso da vida? Um conhecimento acerca da realidade enquanto ela se apresenta, não a realidade em si. Este espírito está preparado para achar belo tudo que há no mundo, porque tudo é necessário, tudo contribuiu para seu crescimento, inclusive os erros passados e futuros. Esta paixão pelo conhecimento é capaz de aumentar o gosto pela vida. A paixão do conhecimento é condição de uma ética-estética, que embeleza a própria existência.

A felicidade do homem que conhece aumenta a beleza do mundo e torna mais ensolarado tudo o que há; o conhecimento põe sua beleza não só em torno das coisas, mas, com o tempo, nas coisas; — que a humanidade vindoura dê testemunho dessa afirmação!”

– Nietzsche, Aurora, §550

Chegamos no amor fati! A potência do conhecimento coloca novamente a beleza nas coisas, na realidade, na vida. Não apenas reconhecê-las, como faria Platão; não apenas  aceitá-las, como faria o burro em Zaratustra, mas torná-las mais belas! O conhecimento torna as coisas mais belas, mais ainda do que podem ser! Alegrar-se não apenas por existir, mas por existir exatamente desta maneira. E Nietzsche nos mostra que a paixão do conhecimento torna possível  a existência ser ainda melhor! Estamos falando de uma soma de potência que o espírito livre adiciona na conta da existência. Ele morde o fruto do conhecimento exatamente ao meio-dia e diz: sim! Este é o paraíso! Tudo se torna mais leve, tudo se torna novo, tudo passa a ser visto com novos olhos.

In media vita [No meio da vida] – Não, a vida não me desiludiu! A cada ano que passa eu a sinto mais verdadeira, mais desejável e misteriosa – desde aquele dia em que veio a mim o grande libertador, o pensamento de que a vida poderia ser uma experiência de quem busca conhecer – e não um dever, uma fatalidade, uma trapaça! – E o conhecimento mesmo: para outros pode ser outra coisa, um leito de repouso, por exemplo, ou a via para esse leito, ou uma distração, ou um ócio – para mim ele é um mundo de perigos e vitórias, no qual também os sentimentos heroicos têm seus locais de dança e de jogos. ‘A vida como meio de conhecimento’ – com esse princípio no coração pode-se não apenas viver valentemente, mas até viver e rir alegremente!

– Nietzsche, Gaia Ciência, §324

Texto da Série:

“Espírito Livre

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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AntimidiaBlog
7 anos atrás

Republicou isso em REBLOGADOR.

anisioluiz2008
7 anos atrás

Republicou isso em O LADO ESCURO DA LUA.

Rafael Marques J Oliveira
Rafael Marques J Oliveira
7 anos atrás

A longa jornada do espírito livre muito bem retratada na construção de sua pirâmide interior, isto é, sua razão estética preocupada mais com a potência do conhecimento do que sua capacidade de ser verdade. Parabéns pelo texto.

Rafael Marques J Oliveira
Rafael Marques J Oliveira
7 anos atrás

Deixo, no entanto, a sugestão de corrigir alguns descuidos ortográficos. Eles não arrancaram a beleza do texto, mas poluiram alguns percursos da leitura.

Wallace Alves
7 anos atrás

Exatamente: a vida é vontade de potência,transgressão.O conhecimento alimenta a existência.

Antônio das Mortes
Antônio das Mortes
3 anos atrás

“Até que ponto a verdade suporta ser incorporada? – eis a questão, eis o experimento”
https://oplanok.wordpress.com/2021/01/22/%c2%ac/