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É costume pensar que os Romanos apenas imitaram os Deuses gregos com outros nomes. Isso é verdade em muitos casos, mas não com Jano, Deus romano do tempo, ou melhor, dos começos e fins, das mudanças da guerra e da paz, das portas e fechaduras e até mesmo da passagem da vida selvagem para a civilizada. Em uma palavra: o deus das transições, o instante onde tudo se transforma, onde ocorre a passagem de um estado para outro.

Jano é frequentemente retratado como um Deus de duas cabeças, uma face jovem, olhando para frente, e outra idosa, olhando para trás. Ele é o ponto singular onde o passado e futuro se encontram. Estranho, ele não é a personificação da vida ou da morte, da semeadura e da colheita, do começo ou do fim, ele está no meio; ele simboliza um Deus que não é uma coisa e nem outra! Mas não se enganem, não se trata de um Deus eternamente em cima do Muro, é muito mais um corte, uma cisão, uma diferenciação. Jano retira o presente de seu curso monótono para colocá-lo em um novo lugar, como a estepe que subitamente some dando lugar às areias do deserto.

Janeiro é o mês que representa Jano, nada mais apropriado. O Ritual de passagem de ano (que todas as culturas performam à sua maneira), é o instante onde todos deixam coletivamente o passado em direção ao próximo ano. Nada muda, e ao mesmo tempo, algo acontece, e tudo é novo. Trata-se do momento das promessas, onde tudo será diferente. Todo acontecimento, seja grande ou pequeno, conta com a presença de Jano, o começo de uma Guerra ou o nascimento de uma criança são transições, e Jano está lá, o fim da guerra e a morte de alguém querido também certamente são acompanhados pelo Deus das Mudanças. Os ritos culturais também são ótimos exemplos da nossa representação da quebra no tempo, uma modificação de homem e mulher em Marido e Esposa, performada pelo Padre; a passagem do estado Infantil para o Adulto imposto pela Legislação e a transformação de inocente para culpado que ocorre quando o Juiz bate seu martelo.

Mas sabemos que nem todas as transições são instantâneas, e nem tudo é imediato. Existem momentos onde ainda não se está nem em um lugar nem em outro, o que fazer enquanto ainda estamos na passagem? A água que ferve não é nem vapor e nem líquido, ou melhor, talvez ainda seja um pouco dos dois. Alguns caminhos são longos, muito mais do que gostaríamos. A estrada talvez seja uma bom símbolo. Esta passagem, o instante que ainda não se decidiu, pode se alongar mais do que gostaríamos, e levar para onde não imaginamos e não gostaríamos de ir. Muitas transformações são difíceis e, na verdade, muitas vezes gostaríamos de permanecer no mesmo lugar.

Zaratustra, o filho literário mais adorado de Nietzsche, conta como a Vontade de Potência quer criar futuro, fazer nascer o novo, o insólito. “O ser humano é uma corda estendida entre o Animal e o Além-do-homem”, ele anuncia. Devemos ser aqueles que fazem o desconhecido existir, que fazem a diferença vir para a realidade. A Vontade de Potência nos atravessa e quer sempre para frente, mas e para trás? Estranho, porque para trás a Vontade ainda parece estar cativa, imóvel. O peso do passado impede o movimento leve no presente, e assim impede o salto para a liberdade. Zaratustra se lamenta,  de nada adianta a Vontade ser a grande libertadora, se mesmo ela está acorrentada! Ela nada pode com o passado, ou será que pode?

Nietzsche se pergunta se seria possível transmutar todo longínquo “foi assim” em “assim eu quis”. Como o futuro pode redimir aquilo que já passou? O filósofo alemão responde: apenas um Instante Imenso seria capaz de tal proeza. Um instante tão intenso que faria a corda da existência vibrar nas duas direções ao mesmo tempo, transformando a aparente desarmonia do passado novamente em um todo harmônico. Todo “foi assim” é um enigma, um apavorante pedaço de acaso, mas isso apenas até a Vontade Criadora e dizer: “Ora, mas assim eu quis! Era tudo parte do meu plano”. Quebrando toda causalidade, a Vontade vem do futuro construir seu andaimes para trazer a si mesma para a realidade. Estranho, mas compreensível: a Vontade dá sentido ao passado com um futuro que apenas hoje conquistou.

Eis o Instante Imenso de que Nietzsche nos fala, é o momento onde tudo se acomoda, o círculo se fecha, onde as coisas todas fazem sentido. É o momento onde a chave encontra a fechadura, o cruzar de um limiar, a passagem onde tudo finalmente se encaixa. É neste portal, chamado Instante, que o filósofo alemão faz Jano olhar para o infinito e encontrar a sua outra face. O passado e o futuro concentrados em um Instante Imenso. A Vontade torce o olhar do Deus, fazendo seus olhos verem um círculo de eternidade, fazendo o futuro coincidir com o passado. A Vontade Criadora transforma toda linha infinita em círculo eterno.

Jano é o portal que precisamos cruzar para se chegar num novo lugar. O ponto limite que precisamos atingir e de onde não é possível voltar. Este acontecimento é imposto pelos Deuses inclementes. O destino nos impõe sua Vontade, uma catástrofe, uma doença, uma guerra, que na pior das hipóteses se transformará em um pesado “foi assim”. Mas Nietzsche ensina a nos tornarmos dignos do que nos acontece, ele possui o instante para criar e transformar todo “foi assim” em “assim eu quis”. O Instante Imenso acontece quando abraçamos nosso momento, atualizamos tudo aquilo que somos e reagimos à altura do acontecimento. O instante se dobra a nosso favor, e a crise é revertida em nossa direção. É a força que dispomos para rodar junto com o mundo, e não ser arrastado por ele. Se o presente é tudo que temos, que ele seja tão afiado quando o fio de uma navalha, para cortar caminho por este mundo e dizer ao final: mais uma vez, da capo.

Tunç Tezel

– Tunç Tezel

 

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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