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Embora os corpos humanos estejam em concordância sob muitos aspectos, diferem, entretanto, sob muitos mais. Por isso, o que a um parece bom, a outro parece mau; o que a um parece ordenado, a outro parece confuso; o que a um é agradável, a outro é desagradável”

– Espinosa, Ética I, Apêndice

Vemos o homem impotente andando pela rua, ele está atrasado, arrasado, tudo deu errado, ele segue com seus passos pesados, irritado, ressentido. Pobre homem comum, vive em meio a desgostos e dificuldades que tornam sua própria vida um estorvo. O vulgar carrega mais peso que o sábio, pois leva consigo a sua própria ignorância. É necessário o dobro de esforço, por metade das recompensas, enfim, nada lhe convém…

Talvez por isso uma das principais atividades do ignorante seja reclamar: falar mal dos outros, maldizer a vida. Nada lhe convém, nada está bom, nada é bom o bastante. Coitado do homem pequeno, tudo está contra ele… inclusive ele mesmo… seus ideais não correspondem à realidade, que parece não se importar com suas tolas preocupações. O ignorante sofre, realmente, mas não entende as causas de seu sofrimento, por isso vive de acusações: “viver é sofrer“, “mais valeria não ter nascido“, “é tudo culpa dele“, “os custos da vida não valem os lucros“. E desta forma desconta suas frustrações.

Do ponto de vista da natureza como um todo, tudo convém, pois tudo é manifestação da potência divina, que age sem constrangimento. Ou seja, no fim das contas, é a própria natureza que expressa a si mesma por si mesma. Mas do ponto de vista dos seres humanos, nós, limitados por natureza, nem tudo são flores. Como modos finitos da substância infinita, nós estamos sujeitos aos constrangimentos de outras potências que nos superam. E é fácil ver como isso acontece o tempo todo.

Por isso, quando falamos do Sábio, e que tudo lhe convém, não estamos falando do tolo que se torna passivo e aceita tudo afirmando “sou um sábio, tudo me convém“. Muito pelo contrário! O Sábio se faz e se cria na luta! Ele é ativo! Sua sabedoria é um caminho percorrido! Sua serenidade não é uma fuga da realidade, é uma conquista dentro da própria realidade, no próprio reino da fortuna, dentro deste mundo. Ora, mas como chegar a isso?

O Sábio atua no mundo para torná-lo conveniente, propício, fértil de bons encontros! Ainda confusos não sabemos o que nos convém. A criança, por exemplo, entende que apenas doces convêm à sua alimentação diária; o jovem entende que apenas sexo, drogas e rock’n’roll convêm a ele; e assim por diante, cada um de nós vive em seu mundo, limitado pelos afetos que possui à sua disposição, e não vê as imensas possibilidades de vida que nos fogem, escapam sem que ao menos possamos percebê-las.

Ao acaso dos encontros não conseguimos entender o que nos convém ou não. Por isso a necessidade premente de coerência e constância nos encontros. Tudo vai junto: quanto mais conhecemos as propriedades comuns dos afetos, e como eles fazem variar a nossa potência, mais nos tornamos capazes de selecionar os nossos encontros. A primeira conveniência se dá na junção entre mente e corpo! Um convém com o outro, a mente é ideia do corpo, os dois seguem na mesma direção. Espinosa lutará incansavelmente para mostrar que não se deve suprimir os afetos para tornar-se um sábio, muito pelo contrário, eles são parte essencial da equação.

O sábio, através dos afetos, encontra aquilo que convém e não convém! Quando sua potência é preenchida de alegria, ele estende sua vida para além de si mesmo e percebe que está mais mergulhado na natureza que o rodeia, realizou um bom encontro, potências se somaram, ele está mais forte, aquilo lhe convém. Quando há um recolhimento, ele percebe que sua potência está de alguma forma sendo constrangida, que aconteceu um mau encontro, onde uma potência externa diminuiu a sua, aquilo não lhe convém. O termômetro da vida é a variação de potência que resulta dos encontros que um corpo opera no mundo. De um lado temos a alegria e do outro temos a tristeza; esta não convém, aquela sim.

À medida que uma coisa concorda com a nossa natureza, ela é necessariamente boa”

– Espinosa, Ética IV, prop 31

O objetivo da filosofia de Espinosa é traçar um caminho claro que leve da servidão à liberdade. Como fazer isso senão pelos afetos? A razão brota daí, dirá o filósofo holandês. Por isso a incoerência e a inconstância são frutos diretos de nossa impotência para moderar os afetos, para selecionar, organizar os encontros. É somente através dos afetos que a sabedoria pode emergir. Sem eles nos tornamos cabeças flutuantes que ignoram a corporeidade das coisas, sem compreender ou ter acesso àquilo que nos atravessa.

Em estado de servidão nada nos convém, ficamos ao acaso dos encontros, a fortuna torna-se nossa mestra e não somos parte ativa daquilo que nos acontece. Daí a afirmação de Ovídio, citada na Ética: “Vejo o melhor e o aprovo, sigo o pior“. O sábio procura desenvolver seu conhecimento da realidade para escapar do estado de servidão em que se encontra. Não é à toa que as características da servidão são: alienação, contrariedade, violência e fraqueza.

O tolo vive fora de si, incapaz, inconstante, incoerente. O ignorante esquece seu corpo! Ele não convém a si mesmo! Mas é claro, quase não existe, está alienado, perdido! Impotente, enfraquecido, ele é incapaz de encontrar as medidas para si mesmo: desconhece-se. Qual a saída? O mais provável é fechar-se… isolar-se e maldizer a realidade com todas as forças. Ora, sabemos muito bem, logo de início, que esta saída ascética é a pior possível, pois não saímos deste mundo em nenhum momento! Toda saída do mundo se dá no mundo, instituindo uma maneira impotente e fechada de viver. Com Espinosa, toda a transcendência foi embora, foi eliminada, deus está morto, agora só temos a imanência e precisamos fazer dela nossa aliada.

Já dizia Deleuze, tudo começa com um pequeno bom encontro, mesmo que ao acaso. Alguém que avistamos, um gesto, um momento, uma paisagem. Um bom encontro é a soma de forças, é a descoberta de um caminho, é a abertura de uma possibilidade. Na soma das potências nós fazemos aliados! Pode ser um amigo, um animal de estimação, um livro, um coletivo. O “Eureka” espinosista é o encontro que convém, onde olhamos para o mundo com mais confiança! A Ética espinosista funciona pela soma: duas ou mais potências se encontram, elas saem mais fortes? Então é bom…

Os homens concordam, ao máximo, em natureza, quando vivem sob a condução da razão. Logo, os homens serão de máxima utilidade uns para com os outros quando cada um buscar o que lhe é de máxima utilidade”

– Espinosa, Ética IV, prop. 35, corolário 2

Isolados somos fracos! Esta lição é básica para o filósofo holandês. E o fechamento atual de nossa sociedade moderna é um modo de escravidão, a saída da servidão passa pelos encontros que fazemos e os afetos que colocamos em circulação através deles. Em uma cidade, como fazer para que os afetos que circulam nos convenham? O Sábio não espera por um convite do universo, ele o faz convir com ele através de suas atitudes! Ele não quer ser um mero espectador, ele sabe que é parte atuante disso tudo.

Conveniência, coerência e constância: não seriam essas as principais características de uma nova sociabilidade possível? Uma nova suavidade poderia ancorar-se facilmente nessas noções comuns. O aumento da conveniência é simultaneamente a utilidade de uns para com os outros. Aquilo que nos convém é aquilo que nos é útil, que aumenta nossa capacidade de sentir, de agir e de pensar. A conveniência é sempre pela potência, nunca pela negação! É uma soma onde o resultado é maior que suas partes.

É um longo percurso até o sábio perceber que tudo convém, e que ele é capaz de ter parte nisso, fazendo as coisas convirem consigo também. Não há contradição na natureza, todas as suas partes se articulam de modo harmônico, determinado e perfeito. Não seríamos capazes de fazer isso também? Afinal, somos partes da natureza, ela está ao nosso redor e dentro de nós. Não somos um império dentro de um império, somos natureza, graus de potência se expressando.

Por isso é possível dizer que, do ponto de vista de Deus, tudo convém, só existem bons encontros, e o mal, portanto, está banido desta realidade. Parece utópico, mas o objetivo do sábio espinosista é aprender a ver tudo da perspectiva de Deus, tornando-se cada vez mais capaz de mover-se e criar como Deus o faz, onde tudo lhe convém. Tão poético quanto difícil!

1º exemplo: A permacultura é ótima para ilustrar como o sábio espinosista também está no campo e não apenas na cidade. Apreender as relações entre as plantas não é para qualquer um! Seria fácil dizer “estas ervas daninhas atrapalham o processo de crescimento dos meus hectares de soja!“. Mas difícil é encontrar o modo como cada planta se relaciona, qual faz sombra para a outra? Qual fornece os nutrientes para a outra? Qual necessita de mais água? O permaculturista faz as plantas convirem umas às outras! Encontra suas coerências! É uma relação de ajuda mútua! Estas relações são encontradas na natureza o tempo todo, mas são ignoradas pelos que advogam a favor da política do “todos contra todos!”.

É útil aos homens, acima de tudo, formarem associações e se ligarem por vínculos mais capazes de fazer de todos um só e, mais geralmente, é-lhes útil fazer tudo aquilo que contribui para consolidar as amizades”

– Espinosa, Ética IV, Apêndice 12

Todos procuram a felicidade, alguns de maneira torta, mas todos querem fazer o mundo convir consigo. Isso é impossível se não estiver acompanhado de constância e coerência. Já vimos, este é o tripé que sustenta o Sábio espinosista. Vivendo na paixão e no acaso dos encontros, os homens sempre discordarão entre si. Espinosa procura, à maneira de um regente, harmonizar as melodias, de modo que cada nota encontre o seu lugar na partitura.

É útil aquilo que conduz à sociedade comum dos homens, ou seja, aquilo que faz com que os homens vivam em concórdia e, inversamente, é mau aquilo que traz discórdia à sociedade civil”

– Espinosa, Ética IV, prop 40

2º exemplo: O maestro é um perfeito segundo exemplo para o sábio espinosista! Quem imagina que ele apenas balança a batuta se engana, e muito! O maestro possui o melhor ouvido, a melhor percepção, o melhor conhecimento de composição! Ele escuta cada nota separadamente e no todo! Assim como o permaculturista, ele também quer encontrar as relações de conveniência entre cada instrumento musical. Como os violinos se implicam com os metais? Aquela modulação para o tom menor não está boa ainda, talvez seja necessário reescrever as melodias do contrabaixo. O sábio espinosista maestro sabe muito bem sobre a coerência e constância de cada instrumento, timbre, melodia e harmonia, e seus respectivos músicos. Por isso ele é capaz de fazer a orquestra toda entrar em conveniência, entre eles, consigo e com a plateia, que se deleita em ver um bom maestro não apenas em cima do palco, mas agindo ativamente para que tudo adquira beleza na execução!

Apenas à medida que vivem sob a condução da razão, os homens concordam, sempre e necessariamente, em natureza”

– Espinosa, Ética IV, prop 35

Aqueles que não convêm, possuem uma relação onde a felicidade de um está, muitas vezes, diretamente relacionada à infelicidade do outro. Ou seja, uma felicidade é diretamente responsável por subtrair a do outro. Tudo fica no zero a zero. Grande coisa, dirá o sábio, isso não vale de nada. Como ele age? Simples, de modo que a soma seja sempre positiva. Isso não quer dizer que sempre é possível e muito menos que seja fácil. Afinal, há um bom motivo para chamá-lo de Sábio. Na conveniência, as potências individuais se somam e se fortalecem reciprocamente, uma se alimentando da outra. Saindo da paixão, que é efêmera e inconstante, queremos entrar na razão, onde os encontros sempre convêm.

3º Exemplo: Claro que não poderíamos esquecer do plano político! O indivíduo contraposto à sociedade cria a ilusão de que a felicidade de um contradiz a do outro. Isso é falso! A liberdade individual aumenta a liberdade coletiva, nunca a cancela! Liberdade sempre multiplica liberdades, caso contrário, não é um ato de liberdade. Isso é difícil de perceber com um olhar pequeno, mesquinho, impotente. A liberdade de Espinosa nada tem a ver com a imagem de livre-arbítrio do ignorante que imagina poder fazer o que quiser onde quiser.

O supremo bem dos que buscam a virtude é comum a todos e todos podem desfrutá-lo igualmente”

– Espinosa, Ética IV, prop 36

– John Martono

Liberdade é a capacidade do sábio de multiplicar os bons encontros, as alegrias, os amores, o contentamento! Não é um colocar-se acima da existência ou dos outros, mas um mergulho profundo na sua forma de se determinar e se mover. Como? Conhecendo as relações, o modo como o mundo opera, se articula, a maneira como os afetos circulam. Liberdade é o aumento da potência nos encontros, na comunidade, na cidade, no mundo, no universo. A vida é este esforço contínuo, ininterrupto, incansável. Produção contínua de encontros que convenham com a nossa potência máxima de afetar e de ser afetado.

O sábio espinosista é aquele que está mais próximo de Deus, ou da Natureza. As coisas adquirem a perspectiva da eternidade. Tudo se torna coerente, tudo se torna constante, tudo se torna conveniente. À moda de Zaratustra, ele aprende a cozinhar o acaso em sua panela para depois saboreá-lo deliciosamente; mais do que encontrar a conveniência, ele faz convir, virtude do corpo e da alma.

A capacidade de pensar e de agir torna o sábio espinosista apto para este mundo, para esta realidade. Por que fugir? Ele é o mais virtuoso dos seres humanos! Não precisa fugir, consegue encarar de frente! Ele apreende o infinito no seio do finito, seus olhos brilham, seu estado é de beatitude. Sua singularidade toma parte da eternidade. O sábio adquire uma felicidade absoluta, um contentamento perfeito. Ele foi capaz de conhecer a si mesmo e ao mundo ao máximo, encontrou em tudo que pôde as relações de coerência, esforçou-se por ver no menor e no maior as relações de constância que os atravessavam.

Nada pode combinar melhor com a natureza de uma coisa do que os outros indivíduos da mesma espécie. Por isso, nada existe que seja mais útil ao homem, para conservar o seu ser e desfrutar de uma vida racional, do que o homem que se conduz pela razão”

– Espinosa, Ética IV, Apêndice 13

O sábio afastou-se o máximo possível da servidão, mas sem afastar-se dos outros. A fortuna, a sorte e o acaso são apenas palavras sem sentido para ele: são desafios. Seu corpo elevou-se a uma capacidade de autorregulação e experimentação de múltiplos afetos: Plura Simul; a mente tornou-se capaz de pensar de modo correto, claro, lúcido. O sábio é aquele que aproxima-se de deus, toca-lhe a face, sorri. Se deus é causa de si mesmo, o sábio, dentro do possível é causa de si também, livre pela potência do corpo e da mente para experimentar simultaneamente uma pluralidade de afetos, ideias e ações.

Não há mais necessidade de esperar por outro mundo para fruir da sabedoria, não há outro mundo onde ela seja mais útil do que este! A sabedoria é potência que se consome no próprio ato de viver, é a própria recompensa! Sabedoria imanente, capaz de dividir com os outros enquanto a multiplica para si mesmo.

A beatitude não é o prêmio da virtude, mas a própria virtude; e não a desfrutamos porque refreamos os apetites lúbricos, mas, em vez disso, podemos refrear os apetites lúbricos porque a desfrutamos”

– Espinosa, Ética V, prop 42

O que quer um sábio espinosista? Encontrar coerência, constância e conveniência! Apenas isso… o que já é trabalho para uma vida toda! Tão difícil quanto raro, mas ao mesmo tempo à mão de todos, próximo de cada um. Que pena o tolo imaginar que sua ignorância, incoerência e teimosia é sabedoria; que desperdício o tolo imaginar que sua inconstância, sua impotência, é liberdade; que lástima o néscio, o estulto, pensar que toda sorte de dissabores e agitações exteriores são a conveniência que procura. A recompensa não virá para o Sábio, ela o acompanha o tempo todo.

Podemos concluir que a sabedoria mostra como a salvação está ao alcance de muitos, mas é negligenciada por quase todos. Ela se dá de modo imanente, não como pensam um cristão ou qualquer outro religioso. A virtude e a sabedoria são nosso melhor caminho! Pouco a pouco, através dos bons encontros que realiza, através do conatus que aumenta a capacidade de pensar e agir, o sábio torna-se capaz de ver o todo de uma só vez! Tudo se apresenta para ele sem contradições, alegria pura dentro de uma harmonia plena: tudo convém, ele está salvo.

Texto da Série:

O Sábio

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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José
José
6 anos atrás

O sábio é desapegado de tudo, inclusive do seu desapego.

RRodolfo Soares
RRodolfo Soares
4 anos atrás

Ou seja : Spinosa é um bom encontro. Viva Spinosa !!!Spinosa , vontade de potencia ?

Vanilson
Vanilson
3 anos atrás

Não nunca de ler os textos dessa página.

Joice Rosa Machado
Joice Rosa Machado
1 ano atrás

Textos escritos com inspiração em Espinoza refletem a inconformidade com a realidade que nos cerca. Extremamente atual e reflexivo para quem busca na sensibilidade dos afetos uma forma de alterar positivamente a convivência. Obrigada por sua contribuição.