Era preciso que o próprio operário fosse moralizado. No momento em que lhe era dito: ‘você só tem a força de trabalho e eu a compro a preço de mercado’, ao mesmo tempo lhe punham nas mãos tanta riqueza, era preciso injetar na relação entre o operário e aquilo com o que ele trabalhava toda uma série de obrigações e coerções que acompanhariam a lei do salário, que aparentemente era a simples lei do mercado”
– Foucault, Sociedade Punitiva
A ligação entre a disciplina está na continuação sutil entre a instrução, a vigilância, a correção e o castigo. Disciplinar é ao mesmo tempo, dependendo de cada caso, vigiar e/ou punir. É a criação de todo um sistema de coerções, recompensas e punições daqueles que precisam trabalhar para os outros. O que acontece quando o corpo nu do trabalhador encontra o capital acumulado do rico?
O par vigiar-punir instaura-se como relação de poder indispensável à fixação dos indivíduos no aparato de produção, à constituição das forças produtivas, caracterizando a sociedade que se pode chamar de disciplinar. Tem-se aí um meio de coerção ética e política necessário para que o corpo, o tempo, a vida e os homens sejam integrados no jogo das forças produtivas, através da forma de trabalho”
– Foucault, Sociedade Punitiva
A Disciplina não é nada mais que um conjunto de técnicas para gerir homens. Toda a questão está em como produzir mais e melhor. É uma maneira de lidar com ilegalidades, atos ilícitos e clandestinidades que impedem o lucro, o crescimento, a produção ininterrupta. A disciplina é o lubrificante moral da máquina de produção contínua. É a mistura imposta entre o: “Isto não é seu, é meu” com o “faça desta maneira para ser mais eficiente”.
A disciplina se faz de várias maneiras, veremos duas:
O Espaço:
Disciplinar é uma arte de distribuir. “A disciplina às vezes exige a cerca” (Foucault, Vigiar e Punir). A produção de um corpo dócil só é possível através de um esquadrinhamento e uma distribuição no espaço. Uma complexa arte de distribuir sobre um plano recortado. Um quadro onde cada um ocupe um lugar e se possa tirar o máximo de cada indivíduo.
A arquitetura geral passa a ser o modelo dos conventos e dos monastérios, dos espaços individuais; um universo isolado (ilhas de disciplina), mas enumerado e localizável. Nas fábricas, cada trabalhador ocupará seu posto de trabalho; nas escolas, cada aluno sentará no lugar designado pelo professor; no hospital, o doente deve permanecer no seu leito; os corpos são distribuídos de maneira a regular os fluxos, as relações, os afetos.
O espaço é incansavelmente quadriculado. Tudo tem seu lugar: um lugar para ler, outro pra se divertir, outro pra estudar, outro pra trabalhar, um para dormir, um para dar risada, outro para comer. As ligações devem ser ordenadas e delimitadas: cada membro da família tem seu quarto, cada operário devidamente posicionado na linha de montagem, cada tipo de doente em uma ala do hospital. Assim é mais fácil saber quem faltou, quem está atrasado, quem está melhor ou pior. Desta maneira o funcionário pode ser rapidamente reconhecido, o aluno encontrado, o doente medicado.
Otimização do espaço, organização hierárquica do múltiplo para impor-lhe uma ordem. A massa confusa torna-se corpo de trabalho eficiente. O poder coloca em fila, organiza linhas, sistematiza quadros, arranja espaços, reparte multiplicidades.
As disciplinas, organizando as ‘celas’, os ‘lugares’ e as ‘fileiras’ criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais, pois que regem a disposição de edifícios, de salas, de móveis, mas ideais, pois projetam-se sobre essa organização caracterizações, estimativas, hierarquias. A primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição de ‘quadros vivos’”
– Foucault, Vigiar e Punir
O Tempo:
Torna-se necessário o controle das atividades repetidas. O relógio é mais uma vez convocado para esta tarefa. Os ponteiros se tornam senhores de nossa rotina. Durante séculos, as ordens religiosas foram as grandes especialistas neste campo dos ritmos e atividades regulares. Hoje encontramos isto em quase todas as instituições: grade horária, relógio de ponto, sinal de entrada, hora do almoço, sinal de saída.
Quanto tempo falta pro fim do expediente? O tempo é precioso, deve ser usado sem desperdício. Tempo é dinheiro, tempo é a eficiência do funcionário. O corpo dócil deve ficar concentrado, puro, firme, agir com desembaraço através das várias atividades de seu dia. Nada de ociosidade, nada de distrações e nada de vagabundagem!
Define-se uma espécie de esquema anátomo-cronológico do comportamento. O ato é decomposto em seus elementos; é definida a posição do corpo, dos membros, das articulações; para cada movimento é determinada uma direção, uma amplitude, uma duração; é prescrita sua ordem de sucessão. O tempo penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder”
– Foucault, Vigiar e Punir
O tempo e os espaços se apossam do corpo, tornando-o dócil, impondo meticulosidade, exatidão, ritmo perfeito. Tudo deve ser feito com o gesto mais eficiente possível. O corpo é adaptado para passar longas horas na mesma posição, realizando a mesma tarefa. É nessa época que aparecem vários manuais de caligrafia, por exemplo, ou também a ginástica laboral. É preciso extrair, arrancar mais tempo do tempo, dividi-lo em segundos, milésimos, movimentos precisos e contínuos. É preciso extrair, arrancar mais espaço do espaço, dividi-lo em metros, centímetros, milímetros. Cada segundo conquistado deve resultar em mais produtos, mais lições, mais movimentos táticos de guerra. Através do cálculo infinitesimal, divide-se o tempo e o espaço até o infinito, submetendo também infinitamente o indivíduo! A produção se multiplica, o corpo nunca se cansa, o trabalho nunca acaba.