A ideia, imanente à maioria das filosofias e natural para o espírito humano, de possíveis que se realizariam por uma aquisição de existência, é portanto pura ilusão. Seria o mesmo que afirmar que o homem de carne e osso provém da materialização de sua imagem percebida no espelho, sob a alegação de que há nesse homem real tudo o que se encontra nessa imagem virtual acrescida da solidez que faz com que possamos tocá-la”
– Bergson, O Pensamento e o Movente
Vimos como Bergson denunciou os Falsos Problemas na filosofia. Problemas que, por estarem mal colocados, não nos permitiam boas respostas (afinal, uma pergunta ruim nunca terá uma resposta boa). Por isso os pares: ordem/desordem, ser/nada, teísmo/ateísmo foram repensados, recolocados. Mas a questão se torna muito mais séria quando chegamos no par: real/possível, aqui o problema é mais embaixo.
O Possível e o Real
“É possível que chova amanhã”, diz indivíduo quebrando o silêncio constrangedor do elevador. Chover é um possibilidade, uma dentre várias, mas que não é real… apenas possível: pode acontecer, mas pode não acontecer. Esta ilusão nos faz pensar que o possível é algo que possui todas as características da realidade, mas não é real… lhe falta algo, lhe falta o ser. Ou seja, ele se tornaria mais que uma possibilidade se lhe fosse adicionado a realidade.
Esta é a nossa concepção tradicional de possível: ele pode existir, mas não existe, lhe falta realidade. O possível é um real suspenso: ou ele pode se realizar, e é visto como possibilidade, ou ela já se realizou, e está na realidade. Ou uma coisa, ou outra… nunca as duas ao mesmo tempo.
O possível é algo que ainda não existe, que ainda não se realizou e brilha como uma potencialidade futura, ansiada, aguardada. A diferença entre um e outro é que o real já se realizou, veio para o mundo, nasceu, está aí, enquanto o outro é meramente concebível. Seguindo este raciocínio, podemos colocar as coisas da seguinte maneira: o passado foram possíveis que se realizaram. Já o futuro são possíveis realizáveis (restando ao impossível ser possibilidades que nunca passarão para a realidade); e o presente é o possível que virou real. Dirá Bergson, criticando esta concepção, o possível é um duplo erro: primeiro, a ilusão de que o presente se desloca lentamente para o passado; segundo, a ilusão, consequente, de que o futuro possível se deslocará até o presente, para nos encontrar.
Podemos ver então, dentro deste falso problema, como o presente, mesmo que efêmero, se torna a base de sustentação de tudo! Estranho, né? Só porque ele é o possível que se realizou. Este erro cria a ideia de que tudo está ou esteve no presente, e o utilizaremos como argumento último. Passado e futuro se submetem ao estreito canal da realidade, ao crivo do presente, passando de possibilidade para algo realizado. Em nossa ignorância, colocamos o presente como a âncora para pensar o tempo cronológico. E aqui o falso problema se torna claro: não falta realidade ao possível!
Aí está todo o falso problema! Bergson replicaria: vocês não veem que é exatamente o contrário? O possível é fruto de uma realidade a qual se somou algo! “Sim“, respondo para o indivíduo no elevador, “estou olhando para o céu, ele está escuro, está ventando, a temperatura diminuiu, conclusão: pode chover“. Quando dizemos “é possível que tal coisa aconteça”, nós pegamos a realidade como um todo que se apresenta bem na nossa frente e lhe acrescentamos algo: uma possibilidade. Conclusão: O possível é o real mais alguma coisa.
É preciso mais esforço mental para o possível que para o real. A realidade está aí, na nossa cara, ela é… simplesmente é. Nós a sentimos tal como ela se mostra. Já o possível é a realidade se refletindo, se dobrando dentro de nós. Por isso nos irritamos quando alguém não vê o óbvio. Ora, mas o óbvio é apenas o que está aí, não as múltiplas direções e hipóteses pelas quais podemos seguir com o raciocínio. Somos como pintores, diria Bergson, não desenhamos o possível sem que a realidade esteja posando bem na nossa frente. Conclusão: diferente da definição tradicional, o possível é o real mais alguma coisa.
O possível se soma à realidade, os dois estão juntos, o primeiro não existe sem o segundo. Ele é o real mais o ato de extração e abstração em relação a ele. O possível é mais que o real, não menos, porque lhe adicionamos algo, lhe adicionamos dobras, direções, expectativas. Seguindo este raciocínio, a ligação entre o possível e o real é a da semelhança. É a continuação de uma reta. A diferença é dada apenas pela realização, mas é muito semelhante quando a imaginamos.
Imaginem unicórnios, o que é isso? Um cavalo com chifre. Imaginem alienígenas, o que eles são? Humanos evoluídos, sem pelos, com cabeças grandes, em naves espaciais. O possível sempre é pensado a partir do real recombinado ou semelhante, expandido, extrapolado. Todo possível é retirado e composto de real. Há sempre uma maneira de relacionar, de encontrar semelhanças. Todos os possíveis estão ancorados no presente, presos em permutações e recombinações. Amarrados na realidade, no que é, no que está aí.
Mas a ética dos possíveis é triste, muito pequena, muito apertada. Pensar a realidade como campo dos possíveis nos parece pouco! Temos que escolher entre um ou outro possíveis? Queremos mais! Um pouco mais de possível senão sufocamos! O real também é pouco, queremos mais! Poderíamos inclusive demandar, já que a situação é tão crítica, o impossível! Bergson tem um nome melhor: Virtual.
Virtual
O problema de pensar em termos de presente como real e futuro como possível é que o tempo perde a sua características de duração e passa a ser visto como pontos em uma reta, que marcam uma distância quantitativa do futuro. Bergson, através da Intuição e da Duração, recoloca o problema em termos de atual e virtual. O atual como aquilo que dura e o virtual como aquilo que se atualiza.
Ora, temos aqui duas maneiras de se pensar a própria diferença! E este é um dos pontos que a filosofia de Bergson ansiava por chegar. Do lado real/possível há simplesmente o quanto aquele possível passa para a realidade, mas nos fim das contas os dois se assemelham muito. Como se o possível se encarnasse na realidade, como se a cópia imitasse um modelo.
O problema fica melhor colocado com o par: virtual/atual. Porque toda o antigo problema está contido na atualidade que dura (o real e seus possíveis)! Tudo está aqui, dirá Bergson, o passado, o real e nós falando de possíveis a partir do real. Falamos coisas que são a mesma: o atual. No atual existe a realidade e nós falando de possibilidades. Todos os possíveis estão ancorados no atual e não no real. O possível e o real são atuais.
Mas o par atual/virtual, pensado por Bergson como problema muito mais interessante, coexistem. Se vimos, na duração, que o passado coexiste com o presente, então não há oposição. Um existe junto com o outro. Há sempre uma nuvem de virtualidade na realidade. Existe atualização, mas o virtual permanece. Não há relação de oposição, há sempre uma soma, atual e, ao mesmo tempo, virtual. No par virtual/atual utilizamos a conjunção ‘E’; no par real/possível, atualizamos a conjunção ‘Ou’.
Para ficar claro: no par real/possível, é como se a luta terminasse com um vencedor que passasse à realidade, se encarnando nela; já no par atual/virtual a luta nunca chega ao fim, as forças virtuais continuam se exercendo e influenciando os movimentos atuais. Nenhum possível precisa emergir na realidade, tudo já está aí! O futuro como possibilidade do real é pobre, porque baseado no presente, limitado pelo presente. Já o virtual é impossível de ser retirado do presente! Porque não está baseado na semelhança. O virtual é a duração que (exatamente por durar) se atualiza em algo novo, transformando o atual. O futuro não está dado no presente, as possibilidades não estão dadas pelo atual, porque nós sempre nos misturamos com milhares de outras durações neste processo. O Virtual é o passado que dura no presente e se atualiza em algo novo! Não é o possível que quer passar à existência, é o atual que quer criar o que nem mesmo existe ainda.
O virtual já é! Já está atuando, ele não está em um futuro esperando para se tornar presente, ele já está aí! Ele não aguarda pacientemente, ele age continuamente! O virtual é o tempo que se acumula enquanto passa e exerce pressão para se diferenciar. Como um animal que acumula variações no seu DNA até se transformar em uma outra espécie! Por isso podemos dizer que o virtual toca o atual por relações de diferença, criando algo novo! Porque o que se atualiza é sempre diferente do atual. Sem diferenciação não há atualização!
Virtual e atual são ambos reais. O Virtual se atualiza por divisão. É necessário diferir para se atualizar. O real e o possível se realiza por semelhança, cópia imperfeita (ao modo platônico). Deslocar o problema do real/possível para o atual/virtual é sair de um presente recortado, pequeno, instantâneo para atingir um presente vivo, forte, com inúmeras forças que o pressionam, que o movem nas mais diversas direções. O real puro é pobre, porque determinado, mecânico. O atual é rico em virtualidades que o atualizam constantemente, abrindo-se sempre para o novo, a criação.
A música é perfeita para exemplificar este conceito! Podemos pensar o par: ‘possível/real’ como uma banda cover. A banda escuta a música e procura tocá-la o mais parecida possível com a banda; quanto mais semelhante, melhor: tentativa de trazer o possível para o real. Mas sabemos de antemão que a cópia nunca será igual o original. Já o par virtual/atual não é uma cópia da realidade, ele não procura encarnar o possível, ele atualiza algo que não está na relação de semelhança. É como uma banda de rock progressivo compondo uma música nova, cheia de experimentações, arranjos, tendências. É como um quarteto de free jazz, no meio de uma improvisação, onde nunca se toca a mesma música duas vezes.
Por isso o pintor imagina um quadro possível… mas quando o pinta é diferente. A atualização é sempre pela diferença, nunca pela semelhança. No par possível/real há a expectativa imagética, no par ‘atual/virtual’ não se sabe onde vai chegar! O maestro imagina uma música possível, mas quando a compõe ela é outra coisa, é diferente. O chef de cozinha imagina um prato, mas quando as múltiplas forças da cozinha se atualizam, o prato é algo diferente, novo, inaugural. Com Bergson nos tornamos nômades, porque através deste movimento nós acessamos novas tendências, inimagináveis, imprevisíveis! O par Atual/Virtual é criativo, cheio de caminhos que não foram percorridos. Ele se abre para o que ainda não sabemos, diferente do problema mal colocado pelo par ‘real/possível’, que sempre nos aprisiona no que já está dado. Aqui a filosofia de Bergson assume o máximo risco! Exatamente o que se espera da filosofia!
Oi Rafael, gostaria de citá-lo em um artigo, mas pra isso seria bem importante eu ter a data dessa publicação, tens como me passar essa informação. Obrigada!
Mirele, você pode encontrar essa informação no próprio link da postagem, antes do título do texto
Bom dia,
Li o texto uma vez. Pareceu -me de dificultoso entendimento. Certamente porque sou leigo.
Diga-me: Qual a importância para minha real e atual vivência, saber tais definições?
Dado que estou mais pro fim de minha existência e me percebo tão desprezível.
Grato.