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A psicanálise começa com uma boa ideia, não necessariamente original, mas ainda assim, aplicada de uma maneira singular e genial. Freud percebeu que havia mais em nós do que a consciência podia alcançar. As histéricas, pensava ele, lembravam de algo que não sabiam, mas que já tinham pensado, e esta condição as fazia sofrer.

Mas o pai da psicanálise não foi o primeiro, muito antes dele, um diálogo de Platão já trazia a ideia de que certas verdades se mantinham latentes em nós, apenas esperando para serem acordadas. Foi assim que Sócrates, protagonista dos escritos platônicos, fez o escravo de Mênon deduzir um raciocínio geométrico complexo apenas estimulando nele a lembrança de alguns princípios gerais. E se perguntava ao longo do diálogo: encontrar em si mesmo uma resposta não é de alguma maneira lembrar-se do que já se sabia? Platão justificou o acontecimento dizendo que nossa alma participa de ideias muito maiores do que a nossa vida atual e individual contém. A rememoração é uma elaboração conceitual de algo que de alguma maneira já participamos, ou seja, são ideias que não se reduzem às nossas lembranças pessoais.

Eis então que, de modo inusitado, uma behaviorista sai de seu laboratório gritando: “Eureka”. Ela também percebeu que todo comportamento emitido parecia carregar lembranças anteriores, ou talvez, três tipos de memória. A primeira delas é a memória filogenética, afinal, todo ser vivo nasce com uma carga genética herdada de todos os ancestrais anteriores que sobreviveram e se reproduziram. Isso permitia certos comportamentos inatos como salivar e mudar a frequência cardíaca.

A segunda delas, a mais estudada pelo behaviorismo, e de alguma maneira herdeira de Freud, é a história pessoal, chamada de Ontogenética; ou seja, o passado que constitui aquilo que somos. Em outras palavras, nós somos o resultado de todos os acontecimentos que se passaram em nossa vida e que constituem aquilo que somos hoje. Somos a consequência de nosso histórico de relação com o ambiente. Uma infectologista, no laboratório ao lado, complementaria dizendo que existe também uma memória imunológica, fazendo menção aos acontecimentos recentes que nos acometeram e para os quais agora temos anticorpos devidamente preparados circulando em nosso corpo.

E existe ainda uma terceira memória, retomaria a behaviorista, e esta muito mais específica para os seres humanos: a Cultura, ou seja, o contexto no qual certos comportamentos são compartilhados, incentivados ou desestimulados. Todas as sociedades humanas desenvolveram a cultura como uma maneira de inscrever o seu passado no presente e preservar-se. Através de rituais, cerimônias e celebrações somos capazes de fundamentar quem somos. Feriados nacionais são um bom exemplo disso. De alguma maneira, aquilo que os mortos fizeram continua vivendo na lembrança dos vivos. Bibliotecas talvez sejam um estranho exemplo disso, são um imenso depósito de feitos do passado que pode ser acessado pelos vivos.

Três formas de memória: uma filogenética, da nossa espécie, uma da cultura da qual fazemos parte e outra da nossa história pessoal. Todas elas articuladas no momento presente. As almas transmigram, defenderia Platão; sofremos de reminiscências, redarguiria Freud; a história individual articula-se com a herança genética e cultural, descreveria a behaviorista, procurando o máximo de precisão científica.

De qualquer modo, todos eles concordariam no essencial: estamos mergulhados em um passado que existe muito antes de nossa existência e nos influencia; nos movemos em algo maior que nós e que não pertence ao agora, mas que de alguma maneira, pertence. Porque o passado se faz presente como uma forma útil de guiar nossos passos pela vida, dando um sentido para o que fazemos. Em suma, tudo o que é humano acontece no tempo e através do tempo

A grande questão é que na correria das nossas vidas, pouco paramos para pensar que o presente imediato é muito menor que a duração do passado. As urgências do dia a dia tomam toda a nossa atenção, e esquecemos dos bilhões de anos que foram necessários para chegarmos até aqui. O instante é uma fina camada flutuando sobre o magma da duração. Nós somos este passado que ainda está aqui, no presente, e de alguma maneira, temos acesso a tudo que já durou. Ou seja, podemos dizer que todo o passado do mundo nos toca de alguma maneira.

Para retomar uma metáfora da psicanálise, nós vemos apenas a ponta do iceberg, mas não vemos toda a parte de baixo que empurra a ponta para cima. O Tempo é a força que empurra o passado no presente, por isso sofremos de reminiscências. As reminiscências são o passado vibrando no interior do corpo, pressionando o presente, interferindo em sua superfície e moldando um futuro que se desdobra dele. A duração tem esta abertura, ela é esta fenda, chamada presente, por onde o passado trespassa, invade, e nos carrega adiante. Estamos no presente, claro, mas somos o nosso passado, e é com ele que nos lançamos em favor de um tempo por vir.

Imagens de Mandy Barker

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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