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Sou um guardador de rebanhos
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.”

– Alberto Caeiro, Guardador de Rebanhos

De todas as acusações feitas a Espinosa, a de Imoralista talvez seja a mais óbvia. Mas, se ela é justa em alguma medida, precisamos entender em que sentido essa justeza se dá, pois na maioria das vezes o termo imoral é movido apenas como uma ofensa. É por isso que, para esclarecer, preferimos usar imoralista no lugar de imoral.

Sabe-se que é impossível considerar Espinosa um mundano, movido pelas paixões, em busca de honra e riqueza. A vida do filósofo atesta essa impossibilidade: ele tinha um pequeno ofício, não tinha mais do que uns pares de roupas e dedicava sua vida à reflexão e ao conhecimento. Por causa dos riscos que corria, ele vivia em reclusão e mantinha apenas um pequeno círculo de amigos íntimos. Assim, qualquer um que o acuse de imoralidade, não sabe bem do que está falando.

Para exemplificar, podemos tomar o começo do Tratado da Correção do Intelecto, onde Espinosa denuncia que se há algum bem supremo, ele não está nas coisas cotidianas, pois a experiência o ensinou que em si mesmas elas não contêm nem bem nem mal. Ou seja, a busca precisa ser empreendida em outro lugar.

Com efeito, as coisas que ocorrem mais na vida e são tidas pelos homens como o supremo bem resumem-se, ao que se pode depreender de suas obras, nestas três: as riquezas, as honras e a concupiscência. Por elas a mente se vê tão distraída que de modo algum poderá pensar em qualquer outro bem.

– Espinosa, Tratado da Correção do Intelecto

Não só a biografia como também a bibliografia de Espinosa impedem que se aceite a ofensa de que ele era um inconsequente. Ora, por que então o acusaram de imoralista? Em que se sentido podemos dizer que Espinosa não tinha moral?

Esse ponto é esclarecido à medida que entendemos a diferença entre Ética e Moral. Uma ordem moral do mundo ou sistema moral de pensamento é aquele que estabelece regras universais para a ação. A filosofia moralista é aquela que trabalha com universais como a verdade, a lei, a perfeição; bem como seus opostos, a falsidade, o proibido, o imperfeito e etc.

Espinosa Imoralista

Ilya Ibraev

Enquanto a Ética, no entendimento de certa tradição filosófica, é o tipo de pensamento que considera a ação a partir de si mesma. Na falta de uma instância superior e externa, os critérios de juízos éticos são intrínsecos ao agente. Assim, não há uma regra que sirva como fundamento de nenhum modelo universal, nenhum imperativo categórico, nenhuma verdade inquestionável.

A Ética contempla o perspectivismo, a crítica, a finitude, a multiplicidade, a diversidade… é uma maneira mais aberta de se pensar. Uma visão ética de mundo promove uma razão leve, que não tenta encaixar o mundo em seus moldes, mas procura encontrar as medidas certas para se relacionar com ele.

Na terceira parte da Ética, seu principal livro, Espinosa desarticula todos os sistemas morais ao fazer uma matemática dos afetos. Como eles funcionam? Como fazê-los funcionar de modo que gerem mais alegrias do que tristezas? Ele não escreve para instituir a lei: não há linha que não possa ser cruzada. Há apenas o bom-jeito e o mau-jeito. “Se você fizer isso, é provável que aconteça aquilo”, tudo está resumido no modo como você se relaciona. O ignorante acusa e sofre as consequências; o sábio entende, decifra, mede e age.

Se existe uma lei, esta é a de Deus, não a dos homens. A questão é que Deus confunde-se com a natureza, então não há como desobedecê-lo, tudo que fazemos é sua vontade, então só temos que aprender o melhor jeito de fazê-lo. Deus nada julga, ele não é um soberano. Da perspectiva da natureza, não há erro, nem falta, nem imperfeição. É aqui que começamos a entender por que Imoralista torna-se um insulto.

Ao suspender os critérios absolutos, a filosofia de Espinosa incita à experimentação, pois ela adota a postura geométrica para avaliar o mundo. Um geômetra não lamenta que uma elipse não seja um círculo; o filósofo espinosista não julga uma tristeza por não ser alegria. Ele simplesmente pergunta “como isso funciona?”, “o que é isso que eu sinto?”. E da mesma maneira que um geômetra define suas figuras pela razão de produção, só descobriremos como funcionam os afetos depois de aprendermos a produzi-los.

Ninguém pode entrar neste processo de descoberta das alegrias sem experimentar. A filosofia espinosista é imoralista no sentido em que os critérios de bem e mal são colocados após as vivências singulares. Não há, portanto, uma cartilha definindo as regras, dizendo o que pode e o que não pode. Não há mandamentos. Pensem o quão absurdo eram essas ideias em meados de 1600! Espinosa escreveu: “Não queremos algo porque é bom, mas é bom porque queremos”!

A Ética faz uma verdadeira revolução com a Moral. Não há anterioridade na descoberta do que é bom e do que é ruim. Ou seja, bem e mal não estão acima da existência, mas junto dela, como bom e ruim. É por isso que a boa filosofia não presta para dar conselhos, porque tudo o que ela faz é apontar um caminho incerto dentre inúmeros possíveis.

Tudo o que se pode fazer é avaliar as coisas como índice de sua própria verdade. Imoralista é a postura de alguém que, antes de mais nada, abre mão de avaliar as coisas pelo seu ajuste ou desajuste a um modelo exterior a ela, pois sabe que sua razão não é medida de todas as coisas, que seus valores falam mais de si mesmo do que do mundo. É por isso que, aos ouvidos de um moralista, o nome de Espinosa é um insulto.

Texto da Série:

Três Acusações

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Alvim
Alvim
3 anos atrás

Muito bom o texto, estou escrevendo sobre Espinosa. Em qual ano esse teu artigo foi escrito, amigo?