Iremos fingir por um instante que não conhecemos nada das teorias da matéria e das teorias do espírito, nada das discussões sobre a realidade ou a idealidade do mundo exterior. Eis-me portanto em presença de imagens, no sentido mais vago em que se possa tomar essa palavra, imagens percebidas quando abro meus sentidos, desapercebidas quando os fecho”
– Bergson, Matéria e Memória
Estamos no mundo, estamos vivos, acordamos de manhã e imagens nos chegam: percebemos. O universo nos chega através de imagens, sensações, penetrações sensíveis que nos invadem. Nossos poros estão abertos. O mundo é um conjunto de imagens, luminosas, sonoras, táteis. Com Bergson, podemos dizer: tudo são imagens. Não no sentido da caverna, olhando reflexos na parede. Já nos afastamos daquele buraco escuro, existe luz, imagens, até mesmo em excesso!
A imagem e o movimento infinito são o Plano de Imanência bergsoniano. Estamos no meio do mundo, tudo são imagens! Elas nos cortam, elas nos penetram. Saímos ao sol e o vemos brilhar, fechamos os olhos e sentimos seus raios em nossa pele. A voz chega ao nosso ouvido como uma melodia que brota da harmonia de fundo da cidade. Há uma multiplicidade de imagens que seguem em todas as direções, se cruzam, e chegam até nossos órgãos dos sentidos. Fluxos nos atravessam. A antena de celular emite sinais, mas podemos ir mais longe, a imagem da comida é mastigada e deglutida, a pomada é espalhada na superfície da pele e absorvida.
E tudo isso excessivo! Até demais! Há muita luz, estamos ofuscados. Há todo um universo de imagens que se cruzam e interpenetram. Nessa massa gigantesca de imagens, enquanto algo é recortado, absorvido, outras nos escapam e são deixadas de lado. Não queremos toda a luz que recebemos, não precisamos de tudo isso. O corpo recorta as imagens do exterior, captando, pegando, segurando, apenas aquilo que lhe interessa. De tudo que nos chega, apenas uma parte fica. Tudo é muito, queremos apenas uma parte. A percepção é menos que o conjunto geral de luzes que nos chegam, uma parte recortada do todo. Retiramos algo do mar de luz, escurecemos umas partes, para defini-las e utilizá-las e jogamos fora o resto.
Podemos definir a percepção com todas as letras: um conjunto selecionado de imagens recortadas pelo corpo. A percepção é menos que a quantidade de imagens que recebemos (isso é bom e ruim). Os olhos captam apenas uma parte do espectro eletromagnético, a cóclea capta apenas uma faixa de vibrações sonoras medidas em Hertz. O paladar, o olfato, os receptores sensoriais de calor da pele, é tudo o mesmo princípio. Deixamos passar um monte de coisas, o corpo não consegue absorver tudo, ele é limitado. Mas retemos o que nos interessa, algo passa, mas algo se reflete e retorna para o mundo. Somos como que espelhos furados, retorcidos, singulares.
Imagens em movimento, este é o plano de imanência. E não há nada por trás, só há este movimento, fluxos. Estas imagens chegam até nós, temos cinco sentidos, por exemplo, que nos mostram estes fluxos no mundo. As imagens e o movimento são a essência do mundo, não há nada por trás, são apenas imagens em variação contínua! E quanto maior a nossa capacidade de perceber, mais teremos ao nosso dispor as informações necessárias para devolver estas imagens ao mundo. Bergson separa aqui a percepção, que chega através dos nervos aferentes do corpo (sensação), da ação, que acontece através dos nervos eferentes (movimento).
O corpo é a escolha ininterrupta entre refração e reflexão. Algumas coisas nós deixamos passar, elas nos atravessam; outras, se refletem, voltam. Às vezes de maneira rápida, reflexa, batendo na medula e já voltando, às vezes de maneira lenta, indo até o cérebro e se separando em milhares de caminhos antes de voltar. Refletir é isso! Nós refletimos porque queremos escolher a melhor maneira de agir, de devolver movimento para o mundo.
Mas como o corpo escolhe as imagens que vão e as que ficam? Qual seria o critério? Aqui Bergson pode ser visto como uma pragmático, o recorte do real está em função da ação:
A percepção, tal como a entendemos, mede nossa ação possível sobre as coisas e, por isso, inversamente, a ação possível das coisas sobre nós. Quanto maior a capacidade de agir do corpo (simbolizada por uma complicação superior do sistema nervoso), mais vasto o campo que a percepção abarca”
– Bergson, Matéria e Memória
Estas percepções não são imagens no cérebro, é todo o organismo que percebe, da ponta do dedo do pé até o fio de cabelo. Mas tudo acontece com fins de uma ação possível. O que o corpo devolverá ao mundo será uma ação, e toda a percepção está em função do recorte que possibilite a melhor ação possível. Ao menor sinal de percepção, é toda uma ação virtual que começa a se esboçar.
Nossa percepção de um objeto distinto de nosso corpo, separado de nosso corpo por um intervalo, nunca exprime outra coisa senão uma ação virtual. Contudo, quanto mais diminui a distância entre esse objeto e nosso corpo, quanto mais, em outras palavras, o perigo se torna urgente e a promessa imediata, mais a ação virtual tende a se transformar em ação real”
– Matéria e Memória
Por isso o corpo recebe as vibrações e as comprime. O que lhe interessa para a ação? Isso precisa ser retido! O que não interessa? Isso ele pode jogar fora. O mundo lá fora está diluído em vibrações sem fim, o corpo as comprime para melhor entendê-las. Esta é uma capacidade incrivelmente útil e necessária para a vida. Transformar milhões de informações sensoriais em uma qualidade como por exemplo: vermelho, nota fá, quente, sabor azedo, etc.
Em suma, perceber consiste em condensar períodos enormes de uma existência infinitamente diluída em alguns momentos mais diferenciados de uma vida mais intensa, e em resumir assim uma história muito longa. Perceber significa imobilizar”
– Bergson, Matéria e Memória
Imobilizamos a matéria! Pegamos milhares de vibrações no mundo, recortamos e algumas nós resumimos. Milésimos de segundo viram uma única sensação chamada “cor”, milhares de vibrações na terra viram uma coisa chamada “terremoto”, milhares de vibrações sonoras viram uma coisa chamada “minha música favorita”. O que acontece da primeira vibração até a última? É aqui que o passado bate na porta e pede para entrar. Nós deixaremos ele entrar? Claro que sim!
Na fração de segundo que dura a mais curta percepção possível da luz, ocorreram trilhões de vibrações, a primeira das quais está separada da última por um intervalo enormemente dividido. Sua percepção, por mais instantânea que seja, consiste portanto numa incalculável quantidade de elementos rememorados e, na verdade, toda percepção já é memória. Na prática, percebemos apenas o passado, sendo o presente puro o inapreensível avanço do passado roendo o porvir”
– Bergson, Matéria e Memória
Mas então podemos concluir que a percepção nunca é totalmente pura! Ela sempre se complica, dá voltas dentro de nós, se torna outra coisa. Algo é retido da primeira vibração até a última, se retorce, se curva. O universo se dobra em nosso interior. Como uma casa de espelhos onde a luz fica rodando antes de encontrar uma saída. Precisamos do passado para compor o presente. O final da frase só faz sentido se ouvirmos o começo, há uma contração. Por isso Bergson diz:
Não há percepção que não esteja impregnada de lembranças. Aos dados imediatos e presentes de nossos sentidos misturamos milhares de detalhes de nossa experiência passada”
– Bergson, Matéria e Memória
Ou seja, e aqui queremos causar alvoroço filosófico: o presente é passado! Ou poderíamos dizer bergsonianamente: presente e passado coexistem porque são duração pura. Mas para isso é preciso redefinir completamente o que entendemos por passado.
Muito bom! Das suas imagens em texto sempre absorvo muitas coisas.