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Faremos agora a transição da aparência para a coisa em si, saindo do conhecimento como representação para uma nova forma de compreensão. O mundo deste ponto de vista parecerá mais distante, mas também insuportavelmente próximo. O fenômeno fornece os dados para a ciência, isto é bom, mas este conhecimento fornece apenas representações. As coisas aparecem para nós usando máscaras, são meras aparências, imagens refletidas na parede da caverna, sempre fica algo de fora. Não conhecemos as coisas como elas são elas mesmas. Como ultrapassar este limite? O que existe por trás da representação?

A consciência é a mera superfície do nosso espírito, da qual, como do globo terrestre, não conhecemos o interior, mas apenas a crosta”

– Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação II, cap.14

Não se pode conhecer a essência íntima do mundo através das representações. Somos como alguém do lado de fora de um castelo, querendo entrar, dando voltas, mas encontrando apenas muralhas em nosso caminho. Schopenhauer realiza também, mas a seu modo, uma revolução copernicana! Assim como Kant antes dele perguntou: o que podemos conhecer? Schopenhauer inverte a relação de maneira mais profunda, sua revolução copernicana quer responder: o que é a coisa em si?

As ciências nos fornecem o “como”, mas não o “por quê”. Existe algo que se furta a toda a representação. Para encontrar a o que está para além das aparências precisamos nos voltar para o que já está para além das muralhas intransponíveis da representação. Ora, reconhecemos a nós mesmos imediatamente, então vamos começar pelo corpo! Excetuando este objeto que somos nós mesmos, estamos sempre no mundo fenomênico. Schopenhauer se pergunta, também ao seu modo, “o que pode o corpo?”. E responde: o corpo pode conhecer a essência íntima das coisas, a Vontade.

Nós mesmos somos a coisa em si, portanto, uma via do interior está aberta para aquela essência própria e íntima das coisas, das coisas que não podemos penetrar do exterior. Algo assim como uma passagem subterrânea”

– Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação II, Cap. 18

Estamos dentro de nós mesmos! Esta é a constatação óbvia que apenas um filósofo poderia nos dar. Nos perdemos no exterior procurando resolver o mistérios das coisas sendo que, na verdade, era só voltarmos o olhar para nós mesmos! Afinal, nós temos acesso direto a nosso interior. Para compreenderemos o mundo precisamos partir de nosso próprio corpo. O que preenche o corpo? Desejos, impulsos, ânsias, propensões, mas também carências, necessidades. Schopenhauer encontra dentro de cada um de nós aquilo que será a base de sua filosofia, seu plano de imanência: Vontade.

Portanto, ensino que a essência íntima de cada coisa é Vontade, e chamo a Vontade de coisa em si”

– Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação II, Cap 18

– Caspar David Friedrich

Adeus Kant. Não somos entendimento puro, não somos consciência abstrata e incorpórea, não somos Razão Legisladora. Muito pelo contrário, estamos enraizados no mundo, como corpo que sente e vive, deseja e teme, ama e odeia. A Vontade fornece a chave do castelo, e mais, mostra que já estávamos dentro do castelo, mostra a engrenagem interior do ser: somos Vontade. O corpo é a Vontade objetivada, ou seja, que se tornou representação, que se tornou representável, real para nós. O corpo é a condição de conhecimento da Vontade, da coisa em si. Ele é fenômeno duplo: ao mesmo tempo representação, que nos permite entender o mundo, e ao mesmo tempo Vontade, que nos permite entender a essência do mundo.

Algo se move em nós, dentro de nós! Algo nos atravessa, nos anima, nos arrebata, nos possui! Querer puro! Ao olhar para dentro percebemos, somos pura Vontade! Mas cuidado, ela nunca aparece completamente nua, mas como conhecimento interno a Vontade ao menos se despe de alguns de seus véus. Aquilo que em nós acontece à luz do conhecimento, segue seus fins de maneira cega, insaciável, silenciosa, unilateral e invariável. Secreções, ritmo cardíaco, digestão, funções sexuais, tudo isso é a Vontade agindo em nós, para além do conhecimento, para além do entendimento, para além de toda e qualquer representação. Ela é causa, nós somos efeito.

O coração é o símbolo da Vontade, pois bate incansável, enquanto os outros músculos entram em fadiga. Nosso corpo todo é fenômeno submetido a causas e efeitos, se cansa, a Vontade está para além da causalidade, é, portanto, incansável. O corpo é fenômenos finito no espaço e no tempo, a Vontade é infinita. Somos fruto deste monstro. O ser humano é escravo da Vontade, seu súdito, movido por esta força maior. Sua racionalidade, muito diferente do que afirmou Kant, é apenas um mero instrumento dela. O corpo é eterna manifestação da Vontade no reino do vir a ser, fluxo perpétuo, sem fim, incessante, incansável.

O mesmo se dá com os desejos humanos. Para cada desejo realizado outros dez aparecem! Para cada momento de paz, seguem-se outros de necessidade, carência. Por isso podemos dizer sem medo de errar que a Razão é fenômeno secundário, é apenas o ministro de relações exteriores. Somos crosta de intelecto, mas nosso núcleo é Vontade pura e fervente. A Razão é mero instrumento, como uma garra, ou uma antena, nada mais que isso, já a Vontade é anterior a qualquer representação.

A comparação mais notável para a relação entre Vontade e intelecto é a do forte cego, impetuoso, que carrega nos ombros um raquítico que vê. Nem com toda a vidência do mundo, o frágil intelecto possui força para dominar o impetuosidade cega da Vontade. Afinal, sabemos bem, pensar cansa, já o desejo é insaciável! Está claro como água, não? Se nossa razão desiste de argumentar, a Vontade segue incansável: “Eu quero” é maior e mais forte que “Eu penso”, vencendo qualquer raciocínio.

Olhando para dentro descobrimos o segredo do universo, uma Vontade impetuosa, em busca de afirmação. Nenhum dos filósofos anteriores teve essa coragem, se agarraram à consciência e à Razão. Poucos se perguntaram “o que pode o corpo?” e quase ninguém encontrou nesta pergunta o enigma do mundo! Há algo mais real e mais poderoso que sustenta nossa delicada racionalidade, nossa frágil representação, nossa precária vida. Sabemos disso porque experienciamos isso. O corpo é função da Vontade, com todos os seus órgãos e desejos. Por isso o querer é mais forte que a Razão. Por isso a Vontade muitas vezes vai contra o Intelecto e suas conclusões, contrariando sua “Razão pura”.

O querer possui outra lógica, completamente ilógica, que não obedece ao intelecto! Ingênuos aqueles que acreditam em seu poder. Ele é seu súdito, ela é soberana. Pode tão somente acatar suas sugestões, como um chefe que ouve seu empregado, como um general que escuta uma observação que faz o soldado raso. Mas, no fim das contas, a vontade dispensa razões. Sabemos disso porque vivemos isso. A inversão que Schopenhauer faz é de implicações radicais, porque o centro do mundo não está mais em um ser Divino, num mundo das Ideias e muito menos em um mundo de Razão Pura. A queda é enorme e não se fará sem traumas.

Para além da Razão, para além dos Fenômenos, para além da luminosidade do campo das representações está a Vontade, ela habita no reino escuro, no interior do corpo, ela nos move, sussurra em nossos ouvidos, nos confunde, nos contraria. Atrás da caverna não estava o Sol da Razão iluminando nosso caminho, estava outra caverna ainda mais profunda e assustadora! A Vontade é a decifração do enigma do mundo! Mas esta resposta não é luminosa, é tenebrosa! Contudo, agora não podemos recuar, precisamos descer nesta caverna, pular neste abismo, ver o que tem no fundo de tudo isso! Precisamos compreender a maneira pela qual a Vontade se manifesta.

Texto da Série:

Vontade e Representação

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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4 Comentários
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Tiago Pereira
Tiago Pereira
5 anos atrás

ÓTIMO TEXTO.

Tiago Pereira
Tiago Pereira
5 anos atrás

ótimo texto!

Zizo Mamede
Zizo Mamede
4 anos atrás

Excelente texto

Yan
Yan
3 anos atrás

Da hora mano ?