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Saímos do corpo, pulamos no abismo da Vontade, o que encontramos? Ora, analogamente, podemos ver que a Vontade se manifesta igualmente em todos os indivíduos, todos os seres vivos e portanto em toda a natureza. Se antes perguntávamos “o que pode o corpo?” agora sabemos que a mesma resposta é válida para “o que pode a vida?”. Ela se objetiva nos mais variados graus, através dos corpos dos múltiplos organismos.

Mesmo no menor inseto, a Vontade está completa e totalmente presente, ele quer o que ele quer tão decisiva e completamente quanto o ser humano”

– Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação II, Cap18

É como uma dança macabra. Os fenômenos da Vontade se expressam em seu grau mais baixo nas leis naturais, no movimento dos planetas, no brilho intenso das estrelas. São as forças puras! Os planetas giram de acordo com este grau mínimo de manifestação das forças, os elementos químicos também mostram um grau de objetivação da Vontade. Os átomos se digladiam por elétrons, os elementos químicos entram em reações violentas, as moléculas catalisam outras. Cristais se formam, o magnetismo se manifesta. Do conflito dos fenômenos mais baixos nascem os mais elevados. Um fenômeno mais elevado domina a outro através da assimilação.

O cosmos é uma guerra da menor parte à maior delas. Por isso, vemos conflitos em todos os campos da natureza. As manifestações mudam, mas a Vontade é ela mesma em toda parte. No mundo dos fenômenos, ela está em guerra contra si mesma. É um arranjo frágil, mas insistente e inclemente. Parte do básico, manifestando-se como gravidade, dureza, etc. Chega então às formas mais simples de vida e, diz Schopenhauer, atinge o ápice no ser humano. Do universal ao particular, do comum ao singular, o caminho é lento, feito passo por passo. A gravidade e a matéria mostram-se em todos os lugares, já a vida é única, singular, rara.

– Caspar David Friedrich

De grau em grau, passo a passo, a Vontade se objetiva cada vez mais nitidamente. O reino orgânico assimila o inorgânico, a planta domina os minerais, o gás carbônico, os fótons, produzindo compostos orgânicos. O animal domina a planta, roubando a energia que esta acumulou, assimilando sua matéria e assim por diante. A Vontade de Vida crava continuamente os dentes em si própria, roubando de si mesmo suas forças. Este ímpeto é cego e não reconhece a si mesma por trás das diversas máscaras que usa. Por isso trata a si mesma de maneira rude, violenta. As forças físicas são a manifestação da Vontade no reino inorgânico. O “querer viver” é a manifestação desta mesma força no reino orgânico.

Tudo se encaixa, de maneira lenta, quebra cabeça de sofrimento e luta, uma dança de vida e morte, uma guerra declarada a céu aberto. Os fenômenos se imitam, se digladiam, competem, se absorvem. É uma dança de dor e prazer. Há discórdia e concordância na Vontade! A harmonia vai até onde é possível a conservação. O cenário e objeto desta batalha é a própria matéria que um tenta arrebatar do outro. Todos disputam a existência no campo dos fenômenos. A força inorgânica é uma das primeiras manifestações da Vontade, mas é na espécie que ela passa ao reino orgânico e adquire interesse.

O reino da natureza sobe de grau em grau até chegar no homem. Aqui vemos a Vontade em sua maior manifestação. O organismo humano trava uma luta contra todas as forças elementares da natureza que foram anteriormente subjugadas. Ele não sabe exatamente o porquê, mas é isso que faz. Está movido pela Vontade de Viver, busca apenas isso. Somos uma folha ao vento, a Vontade é esta força que nos carrega. Somos uma pedra rolando um barranco, a Vontade é a gravidade, caímos sem saber o motivo. Somos movidos, mesmo que não vemos as cordas de marionete atadas em nosso corpo.

Nós mesmos somos a Vontade de Vida, por isso temos de viver, bem ou mal”

– Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação II, Cap19

Os órgãos cooperam para o funcionamento do organismo assim como o organismo coopera para o funcionamento do todo. Por quê? Os organismos querem se alimentar e se acasalar, mas não sabem o porquê! As espécies querem crescer e se reproduzir, mas não encontram explicação. Tudo trabalha para fins que não conhecem de antemão! O instinto é unidirecional e determinado, mas não sabe onde quer chegar. Não sabemos o que fazer com estas constatações! Mesmo sendo racional, o homem está submetido a esta necessidade cega. E por séculos segue seu rumo dentro deste roteiro que lhe foi imposto de fora.

A Vontade de Vida é a única expressão verdadeira para a essência mais íntima do mundo”

– Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação II, cap19

Tudo é um impulso irracional de guerra, dominação e assimilação, dominado por um querer incondicional. Um confronto infinito e brutal. Um impulso para a existência, se possível, para a existência orgânica, para a vida e para sua elevação. O indivíduo quer a vida a qualquer custo! Já pensaram nisso? A qualquer custo! Não importa o quão miserável seja, a dificuldade em que esteja. Não é o intelecto que segue por suas próprias razões, e a própria Vontade de Vida que exige dele encontrar forças e saídas. A vida como fenômeno é animada pela força voraz, um querer abissal que não se abala por nada. A natureza trabalha incansavelmente num impulso desmesurado para criar e conservar todas as formas de vida que competem entre si. Uma criação e desperdício contínuos. O indivíduo possui um valor secundário, ele se vê coagido por algo maior que ele.

Então não podemos nos furtar à pergunta sobre qual a recompensa de toda essa arte e pena, qual o fim que, tendo diante dos olhos, faz com que os animais esforcem-se tão incessantemente? Numa palavra: o que resulta de tudo isso? O que é alcançado durante a existência animal que exige tantas disposições a perder de vista? – E nada nos pode ser mostrado senão a satisfação da fome, do impulso sexual e eventualmente um breve momento de bem estar, como cabe em partilha a cada indivíduo animal no meio das suas misérias e fadigas sem fim. Se se computa os dois, ou seja, de um lado a indescritível engenhosidade da obra instituída, a riqueza indivisível dos meios, e do outro a mediocridade do que por aí é objetivado e obtido, então impõe-se a intelecção de que a vida é um negócio cujo lucro está longe de cobrir os custos do investimento”

– Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação II, Cap28

Por que sofrer tantos tormentos? Por que viver tantas cenas de horror? Não sabemos a resposta porque é a Vontade de Vida que responde por nós! Ela diz “porque sim, porque eu quero”. Ela coloca palavras na nossa boca, e nós seguimos arrastados por ela, mesmo sem acreditar em sua resposta. Simplesmente porque não existe uma explicação racional, clara e objetiva, o intelecto não dá conta. O querer é a premissa de todas as premissas, por isso esse precisa ser nosso ponto de partida: A Vontade. Olhada como fenômeno ela parece ser um verbo transitivo, mas como plano de imanência podemos dizer que ela é um verbo intransitivo: apenas quer.

O tumulto é indescritível – todavia qual o fim último de tudo isso? A existência efêmera e atormentada, assegurada por curto espaço de tempo, no caso, mais feliz com necessidade suportável e relativa ausência de dor, que entretanto logo pode ceder lugar ao tédio; por fim a reprodução dessa espécie e da sua agitação”

– Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação II, Cap28

A Vontade de Vida, vista deste ângulo é uma insanidade! Um Ímpeto Cego! Um mero adiamento da morte! Não sabemos o porquê de tudo isso, mas continuamos jogando o jogo. O salto para o abismo descortinou a irracionalidade de todo este teatro de dores e anseios! Tudo permanece em tensão, forçado ao movimento. Somos impelidos, coagidos à existência, escravos de uma força monstruosa que se manifesta em nós, apesar de nosso julgamento. Seguimos confusos, sem saber o que fazer, a necessidade nos arrasta adiante. Precisamos continuar, Schopenhauer ainda não se deu por satisfeito, a filosofia quer chegar no fundo do abismo.

Texto da Série:

Vontade e Representação

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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3 Comentários
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Trosobão
Trosobão
5 anos atrás

A proposição da depressão como ausência de vontade, mesmo que não seja, traria reflexões interessantesobre.

GuiGs
GuiGs
4 anos atrás

Muito obrigado pelo texto. Melhor sintese que li em portugues sobre a Vontade de Schopenhauer.

kl
kl
Reply to  GuiGs
4 anos atrás

tua bunda