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Schopenhauer pode parecer extremista ao falar da Vontade como a essência do mundo, mas é através dela que começamos a entender os diversos fenômenos que nos rodeiam. O filósofo alemão faz metafísica imanente. Seu plano de imanência fundado como Vontade nos permite entender o mundo como Representação. Um dos grandes exemplos dos mistérios resolvidos por sua filosofia é o amor. Pois é, mas parece que os pensadores, sempre muito sérios e sóbrios, têm vergonha de falar deste sentimento. Talvez eles pensem que o tema do amor esteja reservado unicamente aos poetas. Será que a poesia sabe mais que a filosofia sobre o amor? Não, dirá Schopenhauer.

Seria de admirar que algo que tem um papel tão significativo na vida humana até agora quase não tenha sido tomado em consideração pelos filósofos e se apresente como matéria não trabalhada?”

– Schopenhauer, Metafísica do Amor

Schopenhauer pretende resolver este problema do modo mais simples possível: falando de amor aos olhos da Representação e da Vontade. A primeira pergunta a se fazer ao amor é: por que ele existe? Afinal, parece que poderíamos passar sem ele, não é mesmo? Segunda pergunta, já que o amor existe, de onde vem tanto furor, tanto barulho, tanto ímpeto, tanta angústia e aflição?

Por que tal ninharia deveria desempenhar um papel tão importante e trazer sem cessar perturbação e confusão para a vida humana bem-regrada?”

– Schopenhauer, Metafísica do Amor

A resposta só pode ser revelada aos poucos. Como representação o amor representa a união, a estabilidade do casal, a alegria a completude. O amor é um fim em si mesmo, ele é ímpeto porque é busca desenfreada de se unir à pessoa amada! Busca pela metade da laranja, busca da panela por sua tampa! O amor é o mais digno dos sentimentos, porque é a busca pelo ideal, pela perfeição! Certo? Só se for do ponto de vista da Representação. Como Vontade agora temos ferramentas para dizer: o fim do amor é a união, o fim da união é a estabilidade de um casal, o fim do casal é a reprodução, o fim da reprodução é gerar filhos, e, portanto, propiciar a propagação da espécia na existência. Ou seja, toda a questão do amor se sustenta na composição da próxima geração. A chave para entender as disputas amorosas do presente é esta força, este desejo irracional, que quer compor da melhor maneira possível a geração que sucederá a nossa.

A Representação do amor está submetida à Vontade do Indivíduo, que aqui se submete à vontade da Espécie. É a Vontade de Vida, em si mesma, se manifestando, sussurrando e muitas vezes gritando em nossos ouvidos. Lembrando: A Vontade se utiliza dos indivíduos para seus próprios fins, somos como marionetes em suas mãos. Em suma: o amor é uma estratégia da Vontade para iludir o indivíduo. Atrás do Véu de Maia se esconde a verdade de toda paixão amorosa: propagação do espetáculo irracional da vida.

Todo estar enamorado tem em mira unicamente a procriação de um indivíduo”

– Schopenhauer, Metafísica do Amor

A Vontade nos empurra para as pessoas com as quais geraremos descendentes fortes. Essas motivações são inconscientes e por isso poucas vezes entendemos as razões que nos levam a desejar determinada pessoa. Aliás, muitas vezes escolhemos alguém para além de qualquer possível reflexão racional, nos sentimos contrariados, mas irresistivelmente movidos e atraídos. O instinto se orienta para o que é melhor para a espécie, não para o indivíduo. lembrando novamente: A Vontade é maior que a Razão. Esta é engolida por aquela, que nos conduz com todo o seu furor e inflexibilidade. O finito desaparece não seio do infinito.

Cada enamorado, depois da realização final de sua grande obra, acha-se ludibriado, já que desapareceu a ilusão por meio da qual o indivíduo foi enganado pela espécie”

– Schopenhauer, Metafísica do Amor

– Caspar David Friedrich

Imaginamos que vamos encontrar grande felicidade ao lado de nosso grande amor. Essa é a ideia, e é isso que devemos acreditar para levar adiante a nossa espécie. Que jogo desleal. Tudo não passa de uma grande mentira, diz Schopenhauer, um jogo, um esquema. Vendo pelo lado da Representação não alcançamos a verdade do amor, e somos levados tal qual um burro no qual amarram uma cenoura na frente. Ele anda, achando que vai alcançar alguma coisa, mas está em função daquele que o ludibria com um simples vegetal.

Somos fantoches, não percebemos, mas não somos nós que levamos adianta a tarefa de ter filhos, é o contrário: é a tarefa delegada pela vida, de ter filhos e continuar a espécie, que nos faz seguir adiante. Lá na frente não tem nada, é uma miragem, há sim uma força que nos empurra, sem que saibamos. Por isso comemos bem, nos vestimos bem, dormimos bem, nos cuidamos, nos preservamos. Tudo não passa da busca de um parceiro ideal. O fim da Vontade de Vida é seguir adiante, para além do indivíduo.

Por isso a perda ou renúncia da pessoa amada é a mais profunda de todas as dores! Porque é também uma dor metafísica, ontológica, é a própria Vontade de Vida em nós que se lamenta quando a pessoa amada vai embora. Afeta não apenas o indivíduo, mas também a sua parte eterna, para a qual ele tinha uma importante missão a cumprir, um fim, um objetivo maior. Sem amor, sentimos que o mundo não tem sentido, e do ponto de vista metafísico é exatamente isso! Por isso também o ciúmes é uma força tão grande e atormentadora.

Somos peças em um tabuleiro de xadrez, um peão andando frágil pelas casas, movido por uma mão assustadoramente indiferente. Um homem apaixonado não pertence a si mesmo e suas ações são, na maioria das vezes irracionais e até mesmo cômicas. Por amor alguém é capaz de arriscar tudo! Pois se sente elevado acima de si próprio, e, reconhece Schopenhauer, realmente está! É lógico que ele não está em si mesmo, responde a um chamado do alto, ou, no caso, dos seus genitais: órgão diametralmente oposto ao cérebro. Esta paixão, se não pode ser satisfeita, faz a própria vida perder o encanto, provando que não nos pertencemos. Algo superior em nós é que deseja.

Certo, mas o que vem depois do felizes para sempre? A filosofia de Schopenhauer não traz boas perspectivas futuras. Depois de satisfeita, a Vontade pode descer o véu do amor e mostrar sua verdadeira face. Os amantes se revelam apenas… pessoas. Com todos os defeitos, ignorâncias, insuficiências, e problemas que cabem a um ser humano. Não era a felicidade do casal que o amor prometia, mas a simples continuidade da vida. Não admira os casamentos contraídos por amor estarem fadados a serem infelizes, afinal, o prazo de validade é curto. A Vontade de Vida se utilizou deste recurso para seguir para além do indivíduo, para dar início à próxima geração de amantes que serão enganados novamente por ela.

Por que tanto barulho? Esta é a estratégia da Vontade: vencer pelo cansaço, fazer um estardalhaço, confundir, enganar pela volúpia. A Vontade de Vida é uma força que nos empurra, sorrateiramente, para o sexo oposto. Para isso, ela se utiliza dos mais variados disfarces e desvios. O amor é um dos exemplos de Schopenhauer para nos mostrar que a Vontade pouco se interessa por cada um de nós individualmente, ela segue seus próprios caminhos para além dos fenômenos.

Conclusão, toda paixão amorosa é impulso sexual determinado e específico, direcionado a outro indivíduo, mas que almeja algo para além deste indivíduo em particular. A Vontade passa a perna no indivíduo o ilude, o engana, o faz de bobo. O amor, aquilo que acreditávamos mais puro e digno de estima, é um engodo, o impulso sexual é autêntico. O amor é cego, e nós, seus escravos, vemos sem poder fazer nada. Tudo se resume a alimentar-se e reproduzir-se. Nesse ínterim, os atores perseguem seus fins ilusórios. O mundo caminha através da fome e do amor. Por quê? Porque sim. O querer não oferece motivos racionais.

A Vontade de Vida não é um impulso para meramente conservar-se, ela quer muito mais! E através do amor ela conquista: infinitas gerações, uma depois da outra, uma tão miserável quanto a outra. Fazer parte da espécie e seguir o caminho imposto pela Vontade é o caminho certo para o sofrimento. Sabemos então que o impulso sexual é o núcleo de toda Vontade de Vida, mas por quê? Ora, já vimos que o núcleo da Vontade não tem nenhum objetivo específico. Não podemos dizer porque nos reproduzimos e levamos adiante nossa espécie.

A Representação é um carrossel, um carrinho de bate bate; a Vontade é um trem fantasma, escuro e assustador; o amor, uma montanha russa: gera emoções, mas não leva a lugar nenhum e ainda termina com uma foto com a nossa expressão de medo. Do ponto de vista da miséria da vida, Schopenhauer pode dizer que os amantes são como que criminosos, pois perpetuam, com seu ato, a miséria do mundo. O amor, nossa maior promessa de felicidade é uma mentira, certeza de tristeza e desilusão. Daí podemos ter um vislumbre do que vem a seguir. A Vontade, essência da existência, decifração do enigma do mundo, não trabalha para nós, não está comprometida com nossa satisfação, não promete nada e definitivamente não nos guiará para um lugar melhor.

Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”

– Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas

Texto da Série:

Vontade e Representação

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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11 Comentários
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Matheus
Matheus
5 anos atrás

A Vontade de Vida representada pelo Amor busca um parceiro “ideal”, sugerindo uma racionalidade seletiva nessa metafísica. Esse conceito não faz sentido do ponto de vista da aleatoriedade de forças sustentada pelo próprio pensamento de Schopenhauer, que poderia ser substituído pelo ímpeto de reprodução simples, não ideal, para atingir esse objetivo, deixando a cargo da evolução Darwiniana o processo de seleção.
Logo, concordo que o Amor é justificado por si só, mas a causa de sua existência não pertenceria à Vontade de Vida.

O que vocês acham?

Renan
Renan
Reply to  Matheus
5 anos atrás

Muita viagem pra minha cabeça

João Inaudito
João Inaudito
Reply to  Matheus
4 anos atrás

“O amor seria um pêndulo, entre o tédio e a frustração “. Ouvi essa frase em algum lugar!

Nicole
Nicole
Reply to  Matheus
3 anos atrás

O amor é um mal necessário concordo com você

Lilian Freitas
Lilian Freitas
5 anos atrás

Retire o “ideal”. Retire a busca (e por que apenas pelo sexo oposto)? Fique apenas com amor a todos (à natureza, aos animais, a toda criação), independente se alguém é ou faz algo digno de ser amado, mas apenas o amor por algo maior que nós mesmos. Talvez, e apenas talvez, tenhamos um vislumbre da tentativa de sentido para isso tudo. Não transmiti meus genes adiante? Paciência. A vida na qual acredito transcende tudo isso. Parabéns pelo artigo.

Milkandcookies
Milkandcookies
Reply to  Lilian Freitas
4 anos atrás

É uma linda forma de pensar, parabéns

Maria
Maria
4 anos atrás

E onde encaixamos a homossexualidade?

Cassia
Cassia
Reply to  Maria
4 anos atrás

No universo de Shopenhauer, não existe amor homoafetivo

Roni Pinheiro
Roni Pinheiro
Reply to  Maria
4 anos atrás

Boa pergunta. Será que há algo na filosofia que explique ou contemple a homossexualidade?

Rafinha
Rafinha
3 anos atrás

Texto muito bom, parabéns!! Sou estudante do ensino médio, entrei aqui com uma dúvida teórica e saí com várias sobre a vida…Obrigada 🙂