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Fechamos os olhos enquanto ouvimos uma sinfonia e pensamos: “de onde vêm tantas notas?”. Acompanhamos atentamente a torrente de melodias: “por que faz tanto sentido?”. Abrimos os olhos e vemos embasbacados o pianista tamborilar os dedos frenéticos: “como ele decorou isso?”. Passeamos com ele pelas oitenta e oito teclas: “por que justamente nessa ordem?”

Tudo começa com um pequeno motivo, três ou quatro notas em sequência. Uma terça maior descendente repetida duas vezes e começamos com as Águas de Março. Uma mesma nota repetida três vezes seguida de uma terça descendente, o destino bate à porta, Beethoven compõe a quinta sinfonia.

O que é um motivo? Um índice de movimento. O motivo é motivo de movimento, aquilo mesmo que faz movimentar. É a causa eficiente do que se move. Nos ouvidos de um músico, um motivo é apenas uma sequência de notas que pede para se diferenciar. O motivo é um centro repetitivo rodando em um campo de pura diferença.   

A diferença é primeira, é nela que talhamos um motivo, ela é a matéria constitutiva que usamos no processo de composição. Mas sem a clareza da repetição, seríamos incapazes de encontrar valor nas melodias, nas cenas, nos pensamentos. A repetição é o que possibilita que nós reconheçamos o motivo em meio ao desenvolvimento. É como a estreita área flutuante de uma prancha que nos permite surfar no imensurável. 

O compositor, ou melhor, a compositora é quem constrói um caminho para que um determinado motivo se desenvolva. É uma espécie de mãe, ou de parteira, como queiram. Ela cuida para que o pequeno não se perca em seu caminho. Um núcleo de constância em meio ao devir, um seio materno em meio ao caos.

Uma música é feita de motivos, que por sua vez constituem temas. Os cineastas diriam a mesma coisa dos filmes. Talvez até os filósofos de seus conceitos. O desenvolvimento motívico é uma das maneiras pela quais nós aprendemos a organizar o caos, é o que nos permite entender o que faz uma linha atravessar o deserto. 

Quando nos perguntam sobre os motivos pelos quais fazemos determinada coisa, a única boa resposta é: “porque me move”. Nada mais do que movimento, expansão, criação, é isso que nos leva a fazer coisas. No melhor dos casos, uma finalidade é só uma desculpas esfarrapada. Enquanto, no pior dos casos, é a prisão pela qual continuamos servindo a um fim externo e alheio aos nossos reais motivos.

Jackson Pollock

O motivo é a matéria simples que ao decorrer da peça vai se dobrando, transformando e complexificando. Ou seja, nas mãos de um bom músico, o motivo é plástico. Uma simples ideia pode servir de inúmeras maneiras. Podemos pensar em um origami, que dobramos de inúmeras maneiras, mas o que se dobra é o mesmo papelzinho colorido. E só se dobra porque há um fora que é uma superfície virtual em relação à atualidade do papel.

O motivo nos convida a pensar a plasticidade, nos ensina a fazer um uso múltiplo dos materiais que nos cercam. Eles podem ser musicais, mas também podem ser afetivos. Nossas relações são limites que vamos alargando e estreitando conforme a conveniência. Se elas perdem essa capacidade, estão muito perto do fim. O amor não é rígido, é justamente o contrário, é plástico, é um devir.

Fazer o amor durar depende mais da nossa capacidade de dobrá-lo em novas maneiras do que da teimosia em mantê-lo sempre igual. E não é apenas resignação às mudanças, mas – da mesma forma criativa com que o músico desenvolve seus motivos – variando, produzindo novas condições, fazendo algo novo daquilo que se desgastou.

Nossas ideias são plásticas. Elas não se estruturam numa firme cadeia das razões, como queria Descartes. Elas seguem para todos os lados, num esquema rizomático, compondo uma rede de conexões. Algumas próximas, outras distantes, mas todas relacionadas, plenamente abertas a novas conexões. Os dogmas são ideias que perderam a elasticidade. Os preconceitos são conceitos que se tornaram inflexíveis.

A plasticidade é parte do que explica o espanto que nos toma ao ouvir uma música. “Como se estica, se inverte, se interpola, se modula, se transforma esse pequeno motivo!”. Muitas vezes é o mote de uma poesia que nos toma por completo em seu desenvolvimento. E como esquecer da canção, que cruza as duas coisas?

Partimos do princípio de que o motivo é sempre plástico. Mas isso não significa que seja fácil. A questão que se apresenta é sempre: “qual o limite de dobragem, onde começa a se quebrar?”. Se vamos muito longe, extrapolando demais esse limite, toda a coesão se perde, o motivo se desmancha no meio das outras notas. 

Antes de mais nada, precisamos encontrar o coeficiente de elasticidade dos materiais, sejam musicais, poéticos ou afetivos. Quanto de força podemos usar neste processo? Qual o limite de deformação que ele suporta? Ou melhor, que nós suportamos? O desenvolvimento de algo envolve a metamorfose, não podemos ter medo de ver o que conhecemos se transformar em outras coisas.

O desenvolvimento de um motivo é um jogo entre o que o caracteriza e o que o descaracteriza, poderíamos dizer, entre forças apolíneas e dionisíacas, ou ainda, entre a consistência e o caos. É menos uma batalha entre contrários, do que um princípio de movimento. Tudo o que procuramos é uma boa regulação para esse processo de deformação que é o devir.

Texto da Série:

Filosofia em Tom Maior

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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