Costuma-se diferenciar o verbo integrar do adjetivo íntegro. Enquanto a ação se refere ao esforço de fazer parte, o qualificativo se diz de algo que é honesto. De um lado, o fazer parte; de outro, o ser parte. Quando pensamos o campo relacional, parece que as duas ideias se aproximam bastante. Em uma relação harmoniosa, tentar integrar-se ao movimento do outro significa formar um corpo íntegro.
Assim, pensando nos princípios para uma anarquia relacional, temos a integridade como uma dupla consideração: de si e do outro. Relacionar-se bem depende da capacidade de integrar desejos e ser íntegro na sua efetuação. Não se trata de moralismo, trata-se simplesmente de uma dinâmica afetiva coerente. Levar em conta o que as outras pessoas sentem é uma necessidade tão urgente quanto ter em conta aquilo que se sente.
Dois momentos, portanto. Primeiro, buscar tanto quanto possível ser aquilo que se é. Integrar os desejos na relação. Segundo, respeitar aquilo que o outro é. Ser íntegro em relação aos desejos alheios. Se queremos nos relacionar bem sem a mediação de uma autoridade, precisamos aprender a reverenciar nossos desejos, mas sem atropelar o outro no processo.
Somos seres desejantes e precisamos sê-lo integralmente. O que isso significa? Não podemos deixar de lado o que há de fundamental em nossos desejos, pois isso é desconsiderar a nós mesmos. O que somos? Desejo, então que o sejamos por inteiro. Deixar de menosprezar aquilo que sentimos pode ser assustador, pode exigir mudanças, abalar estruturas, desmontar máquinas funcionais, mas é a única maneira de viver com alguma intensidade.
O amor não é o que dura pra sempre, mas o que permanece alegre em ato. Não há amor possível sem integridade, isto é, não há alegria que dure sem que sejamos contemplados no processo de sua efetuação. Nenhuma relação é interessante quando desconsidera os desejos, torna-se insuportável. Colocado assim em palavras parece bastante óbvio, quase ao ponto de dispensar ser formulado. Mas então por que estamos tão acostumados a deixar de lado aquilo que verdadeiramente queremos?
É mais do que simples comodidade. Estamos acostumados a abrir mão de nossos desejos porque isso nos é exigido o tempo todo. A questão é que não é possível atender a essa exigência por muito tempo sem perder-nos de nós mesmos. Precisamos insistir naquilo que se apresenta em nós e parece que há um preço a pagar por isso. Acostumar-se com os olhares feios é o primeiro passo, aprender a nos defender e aos nossos dos ataques violentos perpetrados a tudo aquilo que se diferencia é o caminho, apropriar-se cada vez mais de nós mesmos, esse é o objetivo.
Uma relação de alegria-mútua supõe uma integração de dois ou mais seres desejantes. Para que seja conveniente, essa integração não se reduz a nenhum direito. Propomos que se substitua o direito pela consideração, autoridade pelo respeito. A etimologia da palavra respeito (do latim, re-spectus, olhar outra vez) nos remete àquilo que merece atenção, que é digno de um segundo olhar. O respeito não é um direito, é uma potência da relação: respeito é pra quem tem.
Por que insistimos em nos relacionar pela posse quando a única garantia do amor é a alegria? Nosso direito aos outros vai até onde a alegria for, enquanto potência de efetuação dos desejos em um corpo comum. O relacionamento que suporta a efetuação dos desejos comuns é digno, por excelência, de atenção. Em outras palavras, ser íntegro é respeitar a pessoa com quem somos capazes de entrelaçar nossos desejos.
Aqui um cuidado, não reduzir o desejo à sexualidade. Não estamos falando apenas disso. Reduzir o desejo à sexualidade é perder de vista o fundamental, que é o esforço de organizar as coisas de um jeito interessante. O que está em jogo é muito mais do que sexo, embora possa envolvê-lo também. Relacionar-se a partir do desejo é ser capaz de arranjar as coisas de um jeito que diga respeito às partes, é dispor cuidadosamente os fluxos de uma maneira que haja uma tendência à intensificação deles.
Segunda cautela, integrar-se ao outro não significa desaparecer como pessoa. Ao contrário, a integração é um entrelaçamento cuidadoso. Relacionar-se com integridade significa tornar-se, tanto quanto possível, parte ativa da relação. Fomos colonizados pela ideia de casal perfeito, que supõe uma indistinção, uma fusão de um no outro. Esse modelo pesa sobre nossas escolhas e nos torna interdependentes e desconfiados.
Opomos à essa lógica do desaparecimento no outro e do outro, um esforço para a existência mais plena de si no outro. É disso que se trata a integridade, de um agenciamento entre aquilo que nós somos e o que são os outros. A beleza está justamente no fato de que o composto final não é unitário, mas uma multiplicidade que age em conjunto. Um canto polifônico em um todo harmonioso. Relacionar-se por amor é formar um corpo que age em conjunto, mas é composto de múltiplas partes que permanecem juntas porque lhes é salutar.
Para terminar, mais uma precaução. Não é o fim dos conflitos, mas o acolhimento deles. Em termos macropolíticos, lembramos imediatamente da democracia, que podemos definir aqui como esforço de integração, como processo de inclusão das partes nas discussões que lhe dizem respeito. Em uma escala micropolítica, uma relação íntegra é aquela que funciona para que os desejos possam fluir com naturalidade – e isto é trabalhoso, é difícil.
Quem prefere se relacionar pela autoridade, quem gosta de ter poder sobre o outro, quem vale-se do direito e da posse é mais covarde do que careta. Abrir-se às possibilidades que o outro traz consigo depende da capacidade de acolher a incerteza, de receber a confusão em casa, de olhar para o horizonte com calma. Quanta força não é preciso para isso?
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: “Navegar é preciso; viver não é preciso”. Quero para mim o espírito [d]esta frase, transformada a forma para a casar como eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.” – Fernando Pessoa
O desejo pode nos assustar como o mar em fúria, mas queremos ter a força de embarcar em suas vagas, ainda que precisemos hora ou outra atracar buscando refúgio dos temporais. Integridade é levar-se consigo onde quer que for. Ser íntegro é desejar que o outro esteja sempre de malas prontas para partir, com ou sem você.
Que lindo! Este tema do amor, de ser quem se é, do Ser, das doçuras embutidas nos medos e nas verdades das incertezas… tão lindo… vc não vai ler em voz alta pra nós? Eu adoraria…
Com certeza lerei, Eli!
Obrigado 🙂
Gostei da idéia!
Esse pilar dentro da filosofia é algo que necessitamos dialogar, pois se existe algo que nos mortifica e que nos cria aquele ímpeto autoritário é o amor romantico, a monogamia. Tenho certeza que esse tema vai mexer com muita gente, pois a demanda por dialogar sobre é gigante, e os arranhões e machucados são muitos. Fico bem feliz de ver esse site se debruçando sobre.
Amei o texto e creio tb que ser íntegro com o outro é ser íntegro com a gente mesmo, seja qual for a relação (não só no amor). Enfim, o desconforto, o conflito, a fúria do mar são o que nos salvam de ficar petrificados em relações onde orgulhos e certezas se sedimentam sobre as paixões e possibilidades, o texto me fez pensar numa belíssima música (Fado) de Roque Ferreira, cantada por Maria Betânia e com a qual me identifico tanto: ”Por quem tu te desvelas, coração? E levanta as velas, vais na ventania Sabendo do naufrágio que o tempo… Ler mais >
Perfeito, Vanessa
E que lembrança, essa canção, coisa linda!
Obrigado pela leitura!