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A vida vegetal lentamente se desterritorializou do mar e se territorializou no solo. Chegando aqui ela encontrou uma grande oponente: a gravidade. Seu problema era simples: como vencer a gravidade sem perder o solo? Seu caule elevava-se procurando as alturas, sua raiz descia com firmeza. Seu objetivo? Aproximar a folha da luz, sem perder os nutrientes do solo. Ela tornava-se acrobata, equilibrando-se no abismo da atmosfera.

A planta é, antes de tudo, folha. Simples assim, folha, pedaço verde onde tudo acontece e tudo se cruza. A folha é o centro do universo. Tudo existe por causa dela, para ela e nela. Ela é o paradigma da abertura para o mundo e, portanto, nossa maior fonte de aprendizado. Ela é o modelo espinosista da capacidade de afetar e ser afetado. A mais bela aptidão para a multiplicidade concentrada numa pequena superfície verde. 

A folha, ela mais do que ninguém, possui o conhecimento da arte de ser atravessada pelas forças sem ser destruída por elas. Folha: platô clorofílico, superfície de troca. Ela é nosso personagem conceitual para uma metafísica da mistura. Afinal, a folha está mergulhada na atmosfera! As plantas são como peixes no mar. Tudo nelas está envolto.

Isso nos faz pensar: toda folha é atravessada por conexões e desconexões, fluxos de nutrientes da terra, fluxo de oxigênio, fluxos de seiva, de fótons, de CO2, fluxos de água. Por isso toda a descrição da vida vegetal pode ser resumida em ciclos: ciclo de carbono, ciclo de nitrogênio, ciclo de reprodução, ciclo das estações. São fluxos de fluxos. Fluxos de carbono que são cortados por fluxos de oxigênio que entram em relação com fluxos de hidrogênio e formam fluxos de glicose. Tudo em tudo.

Fluida é a estrutura da circulação universal, o lugar em que tudo passa a estar em contato com tudo, chegando a misturar-se sem perder a sua forma e a sua substância própria”

– Emanuele Coccia, A Vida das Plantas, p. 45

O mundo, segundo a folha, não passa de uma extensão infinita dela mesma, onde tudo está fundamentalmente mergulhado em tudo. Somos ontologicamente definidos por essa imersão, com graus e velocidades variáveis, mas sempre dentro, sempre parte. A permeabilidade é o resultado dessa imersão. O CO2 precisa entrar, depois o O2 precisa sair. A folha é imersão permeável, deixando certas substâncias passarem, e recusando outras. A folha diz: “Tudo está em tudo, e eu estou em tudo, mas sempre em graus e velocidades diferentes”.

A vida é uma eterna noite de núpcias da substância, onde uma pequena plantinha é uma modalidade atravessada por todos os elementos do universo. Se a vida é uma sinfonia, a folha é uma pequena orquestra. E nós? Ora, nós também somos como pequenas folhas verdes flutuando no ar. Já disse Pascal: somos caniços (pensante é predicado). E podemos sentir o ar em que nos banhamos. Sentir é sempre estar no meio de um universo que nos toca. Ou seja, a vida nunca saiu do meio ambiente, do espaço fluido, do mergulho.

Não somos habitantes da terra, habitamos a atmosfera”

– Emanuele Coccia, A Vida das Plantas, p. 59

A terra ainda nos parece muito imóvel, fiquemos com a atmosfera, lá as coisas se movem com mais facilidade. E o que a planta nos ensina? Somos habitantes daquilo que nos circunda, perpétua imersão. Tudo isso as plantas já sabiam há milhões de anos, elas compreenderam muito antes de nós a Ontologia Atmosférica, o estudo do mergulho, a ciência do envolver-se, a reflexão sobre o afundamento (pra cima). Ser é então envolver-se, mergulhar, é fazer mundo com o mundo. E qualquer organismo é uma maneira de fazer-se no mundo.

Para que haja imersão, o sujeito e o ambiente deverão penetrar-se ativamente um no outro; em caso contrário, falaríamos apenas de justaposição ou de contiguidade entre dois corpos que tocam nas suas extremidades. O sujeito e o ambiente agem um sobre o outro e definem-se a partir desta ação recíproca […] penetrar o meio ambiente é ser penetrado por ele”

– Emanuele Coccia, A Vida das Plantas, p. 61

Sigamos este raciocínio: a água viva é praticamente água, o bicho da madeira é praticamente madeira; e é neste sentido que a onça pintada é praticamente a floresta e o alpinista é praticamente a montanha. Aprendizado das plantas: o surfista e a onda são indistinguíveis, o saxofonista e a melodia também. Sendo assim, como falar de pureza? Como? Impossível! Da última camada da atmosfera ao mais profundo solo oceânico, tudo é mistura! Tudo se faz em relação, e a folha sabe disso.

Reconhecer que o mundo é um espaço de imersão significa, ao contrário, que não há fronteiras estáveis ou reais: o mundo é o espaço que nunca se deixa limitar a uma casa, ao próprio, ao domicílio, ao imediato. Ser-no-mundo significa então exercer as suas influências sobretudo no exterior de casa, fora de seu habitat, arredado do seu nicho. O que habitamos é sempre a totalidade do mundo, que está e estará para sempre infestada pelos outros”

– Emanuele Coccia, A Vida das Plantas, p. 72

A planta está imersa na atmosfera e o que ela faz? Sua verde superfície dá velocidades diferentes à mistura, faz mistura da mistura, mescla, associa, aglomera, embaralha, reordena, encontra novas proporções. Ela está aberta para ser afetada e está pronta para afetar. Ela não é substância simples, ela não é causa nem efeito último, ela é caminho. Toda pequena folha é multidão. Não estamos no paradigma da causa e do efeito, seria simples demais, não estamos pensando em fusão do Todo no Uno, nem nos predicados desta unidade. Falamos apenas de multidão, de mistura da mistura, de trocas contínuas. A singularidade da folha só conhece o plural.

E como elas fazem isso? O paradigma da mistura é a respiração. Através da inspiração a planta torna o fora dentro e através da expiração torna o dentro fora. Respirar é trocar sem fundir-se. Anaxímenes estava certo, tudo é ar. Não é à toa que os Estoicos chamavam a alma de pneuma, ou sopro. Estar no mundo é sinônimo de partilhar o mundo, não sendo uma mesma identidade, mas fazendo parte do mesmo sopro. São os mesmos elementos que nos constituem e que fazem intercâmbio num lugar e noutro.

Misturar-se sem se fundir significa partilhar a mesma respiração”

– Emanuele Coccia, A Vida das Plantas, p. 83

Um mesmo sopro dá consistência ao mundo, sem unificá-lo. A respiração é aquilo que nos sustenta no sentido geral, quando aspiramos ao poder, quando suspiramos de tristeza, quando sufocamos de apreensão, quando a inspiração nos faz escrever, quando evaporamos de um lugar, quando cheiramos a medo ou exalamos felicidade.

Em suma: tudo que vive tem apenas um jeito diferente de respirar! A digestão é uma respiração de nutrientes, o sangue é a respiração das células, a leitura é uma maneira de respirar o pensamento do outro. Até o sexo é uma maneira de respirar. Em suma, o mundo é uma respiração cósmica e a lógica não passa de uma pneumatológica.

Nosso primeiro aprendizado: é impossível nos libertar do meio no qual estamos imersos, somos o meio da atmosfera, tudo está aberto da alguma maneira para o outro. Segundo aprendizado: só é possível esta imersão se tudo estiver em tudo, não existe pureza. Terceiro aprendizado: a imersão torna possível a respiração, onde o fora e o dentro se relacionam, uma planta existencialista diria: estamos condenados a fazer trocas. Tudo entra e sai de tudo, o mundo é abertura e circulação. Sendo assim, existir é abrir-se, é arriscar-se nas infinitas misturas, é expor-se.

Conhecer o mundo é respirá-lo, já que todo o respirar é uma produção do mundo: o que parece estar separado reúne-se numa unidade dinâmica. Respirar significa saborear o mundo. E o mundo é para todo o ser vivo e para todo o objeto que se dá através e graças à respiração. O mundo tem o sabor do sopro

– Emanuele Coccia, A Vida das Plantas, p. 106

Texto da Série:

Metafísica da Mistura

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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4 Comentários
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@brendawoche
@brendawoche
3 anos atrás

Lindo demais, uma mistura de inspiração filosófica, budista, simplicista e realista, também claro estoicista.

Thais
Thais
3 anos atrás

Maravilhoso!

Vera Lúcia de Castro
Vera Lúcia de Castro
3 anos atrás

Comecei a ler o livro “A Vidas das Plantas”. Não resisti! É uma Filosofia muito diferente, pra mim. É quase uma religião. É coisa de fruir e fluir.
Estou no capítulo 7, e quando leio, sinto vontade de parar a leitura pra sentir a intensidade da coisa lida. Mas, ao mesmo tempo, não quero parar de ler.
É uma Filosofia da Imanência, né?
E a ideia de “imersão” me arrebatou!
É muita coisa! Obrigada, Rafael.
Acho que, a partir da imersão nesta leitura, posso voltar a ler os textos sobre Bergson, aqui do Razão, agora com outro entendimento.
🙂

Vera Lúcia de Castro
Vera Lúcia de Castro
3 anos atrás

* A Vida das Plantas.