A sinceridade é o primeiro passo na direção de uma relação mais livre, pois é a constituição de um lugar-comum onde conquistamos uma estranha calma, que podemos chamar de confiança. Se a relação é um lugar acolhedor onde os desejos podem ser enunciados, onde os devires são possíveis, então conquistamos uma firmeza, uma nova coragem para estar juntos. A confiança é a sinceridade qualificada em um processo de mútua implicação dos envolvidos na relação.
Uma relação de alegria-mútua é uma costura delicada entre partes frágeis. Quando deixamos de nos relacionar pela posse, quando recusamos os deveres e os direitos, quando conquistamos alguma horizontalidade, a relação passa a se sustentar pela própria capacidade de tecer-se de forma interessante. As questões propostas a partir daí dizem respeito às próprias relações e não mais aos modelos normativos que a sobrevoam como abutres.
Posto em termos muito simples, anarquia é o oposto de hierarquia. Quando falamos em anarquia relacional, estamos pensando na prática incessantemente renovada de resistir a toda forma de ordenação incontestável segundo qualquer autoridade. Estamos acostumados a desconfiar de tudo porque por todos os lados os papéis e os valores são distribuídos de forma hierárquica. Enquanto experiência coletiva, a confiança é mais do que um princípio ético, é uma arma para a luta micropolítica.
Etimologicamente, confiar (con | fidare) significa simplesmente acreditar no outro, o que por si só já é interessante, pois nos tira de um estado de medo constante de que o outro esteja contra nós. Mas talvez a confiança seja mais do que isso: confiar não seria fiar junto do outro? Se a etimologia é pouco, partimos para a poesia. Confiar é tecer, é acreditar na possibilidade de encontrar o cruzamento onde nossas linhas se fortalecem em nós, entre nós.
Nós, como pronome plural, mas também como substantivo: queremos integrar relações fortes como os nós de uma rede. Um nó é um método de apertar ou segurar, mas há muitos tipos de nós, um para cada necessidade. Alças, laços, emendas, elos, vínculos… há tantas maneiras de se relacionar! Quem quer navegar pelo amor precisa aprender a arte de fazer, refazer e desfazer nós, porque cada relação exige dos (e de) nós uma configuração diferente das linhas.
Nosso desejo é uma linha intensa que se encontra a maior parte do tempo preso em relações segmentares, duras, codificadas, em formas binárias: jovem/velho, hetero/homo, homem/mulher, criança/adulto, etc. A exigência desse tipo de linearidade é a exigência de conformidade, que impede que as outras formas de se relacionar sejam manifestadas. Uma relação de confiança permite que o desejo explore o vasto campo que existe para além dessas categorias. Confiar é dar corda para novos nós, é incitar o outro a experimentar a si próprio, acreditando que desse processo pode surgir algo de interessante para todos os envolvidos.
Quem não confia em ninguém sempre recorre a alguma mediação para se relacionar, algum tipo de garantia, qualquer proteção, pois está sempre com medo imaginando os possíveis traidores. Pessoas assim apostam na lei, na moral, ou em qualquer coisa que entregue alguma previsibilidade, que mantenha calados os descontentes, submissos os revoltados e assujeitados os sujeitos. Quem não confia não é capaz de perceber que quando os outros seguem o próprio desejo, eles não estão necessariamente lhe traindo. Os eternos desconfiados são como fios soltos, prontos para desfiar os nós.
Não que a desconfiança seja inútil, mas é preciso calibrá-la para não acabar afastando, sem nem conhecer, todos aqueles que tentam se aproximar. Um ótimo indício para continuar desconfiando dos outros é o quão mal eles recebem os questionamentos. Afirmamos novamente, a anarquia relacional é a contestação de toda autoridade. Confiar não é dizer amém a tudo que o outro faz, é o oposto, é saber que a relação é um lugar onde as dúvidas e as incertezas desenvolvem uma relação mais forte.
Confiar no amor não é tornar-se cego pelo outro, ao contrário, é tentar enxergar que aqueles que nos amam estão buscando o melhor para si mesmos sem intencionalmente nos querer mal. Os diversos interesses de que os outros são capazes não se convertem automaticamente na nossa tristeza, geralmente nós é que pavimentamos a ponte entre a surpresa e a decepção, fazendo péssima conversão do “não tinha pensado nisso” em “não era o que eu queria”. O que verdadeiramente buscamos é a confiança para nos sentir acompanhados ainda que venhamos a percorrer caminhos que não conhecemos.
Em resumo, o que significa confiar? Primeiro, uma tranquilidade para estar juntos. Segundo – e consequentemente – uma disposição para tecer uma relação singular, para buscar o melhor para ambos. “Como é difícil se relacionar”, talvez este refrão, que estamos tão acostumados a repetir, se dê porque um relacionamento assim é raro. No entanto, antes de concluir que é impossível, precisamos nos perguntar qual a nossa capacidade de confiar nos outros. A confiança, por outro lado, é como a cançãozinha que a criança entoa em voz baixa para ter coragem.
Se nos falam de ingenuidade, se nos mostram tantos exemplos trágicos, se nos alertam dos perigos de crer nos outros, respondemos que preferimos nos relacionar pela alegre ousadia do que pela triste condescendência. Para relacionar-se é preciso pôr-se à prova, e queremos nos espantar com a companhia descoberta no encontro com os outros, e não com a enorme quantidade de fracassos relacionais. Se esse tipo de relação é rara, então é exatamente o que buscamos, pois já sabemos que, do jeito como atualmente são, a maioria das relações não servem para nós.
Já formulamos o mesmo objetivo de muitas formas diferentes, mas ainda não cansamos: buscar acompanhados o que nos faz bem, tentando acompanhar o outro naquilo que o faz bem. Não há melhor maneira de se relacionar. E se isso parece difícil no amor, então precisamos tornar o amor tão próximo da amizade quanto possível. O alicerce fundamental de qualquer amizade é a confiança enquanto aposta inúmeras vezes renovada em um estar juntos que se converte em mais alegria.
Uma boa relação é tecida de afetos compartilhados, nem sempre alegres, é verdade, mas elaborados em conjunto tornam-se, com certeza, menos tristes. Ainda que a solidão seja uma necessidade, uma relação não se fortalece na individualidade. É justamente nesse ir e vir entre uma parte e outra que os fios se cruzam e as possibilidades de fortalecer a relação aparecem, cruzando os pontos até transformar os retalhos em uma colcha capaz de cobrir uma grande variedade de afetos.
No amor e na luta queremos fortalecer os laços para agir em conjunto. Para isso, podemos resumir todos os nossos princípios em uma só prática, a de entrelaçar alegrias. Enquanto contestação da verticalidade, a anarquia relacional é este entretecimento das alegrias na sua diversidade. A conquista de alguma horizontalidade só é possível com confiança – em nós, no mundo, nos outros. O objetivo sempre será o de tornar a relação, tanto quanto possível, imanente ao desejo que se desloca sobre ela.
Elos que se entrelaçam em acalanto…
Muito linda essa série!
Obrigada (:
Texto importantíssimo. Os eternos desconfiados estão convictos que a vida é uma batalha entre eles e o mundo. Prefiro acreditar até que se prove o contrário a viver com o coração amargo. Ser ingênuo assim tem seu preço, no entanto. Por isso, aliás, que a Cinderela só foi salva por uma fada do reino mágico.
Parabéns, parabéns, por tanta beleza expositoria que torna a vida mais bela e imanente,minha sincera reverência pelos belos textos.
Confiar no amor não é tornar-se cego pelo outro, ao contrário, é tentar enxergar que aqueles que nos amam estão buscando o melhor para si mesmos sem intencionalmente nos querer mal.
Essencialmente a percepção que o bem individual não significa necessariamente fazer o mal ao outro. Fundamental e raro ao mesmo tempo.
Fantástico.