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Todos os princípios propostos pela anarquia relacional visam a criação de boas medidas para o envolvimento. De maneira geral, isso se faz em dois tempos: primeiro, recusamos todos os modelos; depois, buscamos o que faz sentido na própria relação. Sacudimos as ideias preconcebidas para ser capazes de observar com lucidez o que de fato se passa. Se o objetivo é nos envolver de forma alegre e mútua com quem desejamos, então precisamos olhar diretamente para a relação, sem medo de questionar tudo o que existia antes dela.

A anarquia relacional é primeiro uma desconstrução do amor como o conhecemos, mas isso não é feito de qualquer maneira. Não é tão fácil se desprender dos modelos. É muito mais uma resistência ativa do que uma destruição inconsequente, porque não é fácil identificar onde somos oprimidos e onde somos opressores. Nós fomos investidos por formas relacionais hierárquicas tanto quanto investimos nelas. Assim, é necessária uma atenção constante aos nossos próprios movimentos para distinguir o que é nosso de fato do que não é.

Quando jogamos fora a cartilha normativa dos relacionamentos, quando deixamos os nomes de lado para encontrar as pessoas, sentimos a necessidade de singularizar nossas relações. Não se trata necessariamente de um contrato com regras explícitas e multas previstas; também não se reduz a um acordo onde cada parte cede algo em prol de uma conciliação intermediária. Propomos o envolvimento como forma ativa de busca das medidas que fazem sentido em cada momento. Dessa maneira, as regras são de passagem e os limites duram enquanto houver sentido.

Todo nome é uma abstração do que se passa na relação. Quando afastamos as designações, insuflamos as relações de possibilidades. Um casamento não precisa ser entre duas pessoas apenas. Uma relação amorosa não precisa ter sexo. Uma amizade pode ser erótica. Percebem? Parece que estamos relativizando tudo? Ora, é porque não estamos interessados em nos relacionar com nomes. Ao suspender a influência das denominações, descobrimos pouco a pouco que cada pessoa, cada momento e cada lugar trazem um novo modo de se relacionar.

Envolvimento

Susanna Bauer

Sustentando essa força de repulsão dos modelos, nos tornamos capazes de reinventar o amor cada vez que ele se apresenta, mas com calma, com doçura. Questionar os padrões para libertar as relações das expectativas já dadas e dar a elas a chance de se tornarem aquilo que podem ser. Quando deixamos as coisas acontecerem para além daquilo que foi previsto, criamos condições para que a diferença cresça. É isso a que chamamos envolvimento, uma forma de abraço que não fecha, mas abre o mundo.

Envolver é dobrar-se junto dos outros, mas uma dobra não é uma coisa tão simples assim. Pensem num origami, um pedaço de papel que se dobra várias vezes até assumir uma nova forma. O que se opera cuidadosamente na dobra é um processo de implicação que coloca pontos antes distantes em contato, e faz isso porque se apropria de uma superfície virtual que lhe é exterior. Dizendo em outras palavras, nos envolvemos colocando em contato o que há de singular, buscando soluções ainda impensadas para tanto! Dobrar é trazer um pouco do fora para dentro.

O envolvimento é a criação de novas articulações com o mundo a partir dos encontros com os outros. Quando nos envolvemos multiplicamos nossos olhos, ampliamos nossa pele, somamos nossas vozes, aumentamos a interface entre os afetos e a vida. Mas não apenas quantitativamente, alteramos a qualidade mesma daquilo que somos.  Andar bem acompanhado é ser mais múltiplo naquilo que acontece e, consequentemente, ter mais parte em todo acontecimento. As coisas definitivamente não se passam da mesma maneira quando estamos juntos de quem amamos.

Para que isso aconteça, precisamos aceitar que somos ao mesmo tempo semelhantes e diferentes, simultaneamente parecidos e diversos. Parece paradoxal, mas é bastante evidente: temos muito em comum sem deixar de sermos bastante singulares. Esse pensamento permite que nos compreendamos mutuamente sem exigências de adequação. Não queremos que os outros sejam iguais a nós, mas tampouco queremos que eles sejam totalmente diferentes. Enquanto soubermos sustentar essa intersecção, estaremos nos envolvendo de forma saudável.

Quantas vezes é preciso repetir o quão difícil e raro é esse processo?  Se houvesse um meio-termo salvador, seria ótimo, mas não há receita nem conselho que funcione para todos os encontros. Não haverá uma solução definitiva para manter alegres as relações. É por isso que o envolvimento é como uma dança onde vamos descobrindo quais os movimentos que interessam a cada um enquanto a música toca. Uma relação saudável é uma experimentação que se faz em ato, de forma contínua, cuidadosa e acompanhada. 

No fim das contas, a questão que realmente importa é como queremos nos relacionar. Qual é o conjunto de valores que nos interessam? Aqueles que optam pela anarquia relacional escolhem ativamente pela horizontalidade e mutualidade. Não queremos nos colocar acima de ninguém para gozar de qualquer privilégio. Queremos estar (e gozar) juntos. Então, retornamos sempre a esse duplo movimento de desprezar os modelos verticais hierárquicos para depois cultivar relações genuínas e baseadas na alegria mútua.

A maioria dos espaços são constantemente estriados por forças muito maiores do que nós: deus, o capital, o governo, a família. É por isso que esse esforço por horizontalidade se nutre de todas as lutas minoritárias: o feminismo, enquanto prática de contestação do sexismo; o antirracismo, enquanto frente de combate à opressão branca; as questões de gênero e sexualidade, enquanto criação e fortalecimento de novas subjetividades; e muitas outras. Lutamos por superfícies tão lisas quanto for possível para que possamos criar vincos, descobrir cantos e dobrar esquinas onde nos encontramos com mais liberdade.

É a soma unívoca dessas vozes dissidentes que possibilita relações realmente mútuas. O envolvimento de que falamos nos convoca a participar dessas lutas. Não há como desejar se relacionar de forma anárquica sem tomar parte nos movimentos de contestação da opressão. Cada senhor, cada mestre, cada patriarca, cada corporação que cai é a ocasião para uma nova festa, para outros encontros, para mais possibilidades de envolvimento. Levantemos os olhos para o horizonte: a liberdade é um campo em intersecção que cresce. 

A anarquia relacional não é uma cartilha e não tem nenhuma grande conclusão, pois, partindo de seus princípios, apostamos que o melhor está por vir. Assim sendo, não poderíamos terminar esses pensamentos senão com um convite ao envolvimento. Cada amor é uma dobra no mundo, cada relação é uma reentrância da vida, cada pessoa é um ponto de articulação para novos afetos. Abra-se, abrace, abra a si.

Texto da Série:

Anarquia Relacional

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Rafael
Rafael
3 anos atrás

Que série fenomenal! Um texto mais sensacional que outro…

Nica
Nica
3 anos atrás

Show… amei e fico feliz em encontrar pensamentis consonantes com os meus…

Vanessa
Vanessa
2 anos atrás

Que texto incrível! Obrigada Rafa.