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Precisamos entender como se forma um rosto, ou seja, como surge a possibilidade de alguém dizer “eu sou X ou Y”. Este conceito é essencial para Deleuze e Guattari.

O rosto é formado pela linguagem. Ou seja, toda palavra é, antes de mais nada, uma palavra de formação e de conformação. A linguagem é usada como demarcador, ela delimita, dá a cada um o seu lugar. Toda palavra que ensina também comanda. Ela não é feita para acreditar, mas para ordenar.

Através da linguagem, uma vida se modela, se dispõe, se “encontra”. É a palavra que transforma o réu em culpado, o casal em casado, o adolescente em adulto. 

Mas vamos explicar melhor, e para isso, Deleuze e Guattari fazem uso de dois conceitos:

Muro Branco

Deleuze (mais que Guattari) fala do conceito de muro branco para delimitar o nosso regime de signos. Todo povo e todo período da história tem o seu regime de signos. Uma rede circular, fechada, criando uma grande teia de significância, ligando um signo a outro, sem fim.

O que o sacerdote faz? Ele interpreta. O que isso significa? Ele olha seu livro sagrado e marca qualquer novo enunciado, colocando-o numa posição dentro da rede prévia de significação. Ele diz: “Isso é pecado, isso ofende Deus” ou “isso é bom, isso agrada a Deus”. Juízes, psicólogos e a sociedade como um todo também fazem isso.

Ora, mas qual o problema da interpretação? Simples, enquanto a língua é viva e inventiva, a interpretação destrói toda produção de novos enunciados, ela codifica tudo segundo seu centro de significância. Todo regime despótico mutila as conexões do desejo, cortando seus fluxos com o fora. 

Isso significa que quando um desejo começa a dirigir-se em novas direções, ele é imediatamente cortado ou reendereçado para dentro. O muro branco pergunta “quem é você? O que você quer?” e assim nos inscreve em seu regime de signos. 

Mas o desejo é interpretado segundo o quê? Aqui encontramos o fundamento de territorialização. O fundamento despótico é o ponto central que distribui os signos segundo sua posição. A colonização do sujeito é feita por esta rede de significados de onde o sujeito se distribui segundo uma proximidade menor ou maior do centro. 

Buraco Negro 

Eis que surge o conceito de Buraco Negro. Guattari (que gostava de astronomia mais que Deleuze) cria este conceito para falar da nossa subjetividade. Se o Muro Branco é uma rede de significância toda costurada, como estrelas no céu, o buraco negro é o ponto central que concentra e para onde fluem todas estas significações. 

Podemos chamar o Buraco Negro de condicionante incondicionado, o motor imóvel, a ideia eterna, o inquestionável. O fundamento é um Buraco Negro, um ponto fixo. “É assim porque é assim“, ele é Deus em suas mais variadas formas.

Mas tal como em nossa galáxia, além do centro, há vários microburacos negros. Este ponto de extrema gravidade de onde nada sai somos nós mesmos. Nossa subjetividade é tão pesada que não conseguimos sair de dentro de nós, estamos eternamente presos nesta armadilha gravitacional do Eu.

Somo in-divíduos, somos um Ego. Afinal, o fundamento de todas as coisas (segundo Descartes) é Eu penso, eu sou. Todo “Eu sou” é um buraco negro! Todo “você é” cria um buraco negro. Nada sai! Tudo entra e é esmagado pelo peso!

O Buraco Negro é o sujeito que aprendeu a dizer “Eu sou”. Mesmo sendo uma subjetividade formada de fora, atravessada por toda a linguagem, ele se acredita algo único e eterno. O sujeito se torna pesado porque é entupido de conteúdos. Subjetividade rendida, ela só absorve, não mais cria.

Sendo assim, podemos dizer: o conceito de Buraco Negro é uma subjetividade esmagada que perdeu toda a criatividade, é a desaceleração dos fluxos! E como diz a própria teoria astronômica: quanto mais matéria, mais devagar o tempo passa, ou seja, o Buraco Negro é a fixação da identidade na eternidade.

Eis o Rosto!  Ele é uma coagulação, uma desaceleração de fluxos, um ponto onde múltiplas linhas de significação se cruzam. O rosto é o Muro de Significâncias mais o Buraco da Subjetividade. Ele só é possível em uma linguagem que gira em si mesma, em uma subjetividade pesada e fechada.

Uma criança, uma mulher, uma mãe de família, um homem, um pai, um chefe, um professor primário, um policial, não falam uma língua em geral, mas uma língua cujos traços significantes são indexados nos traços de rostidade específicos. Os rostos não são primeiramente individuais, eles definem zonas de frequência ou de probabilidade, delimitam um campo que neutraliza antecipadamente as expressões e conexões rebeldes às significações conformes”

– Deleuze e Guattari, Mil-Platôs – Vol.3, p. 36

Todo rosto define um campo de frequência, de possibilidades, de probabilidades. Todo rosto delimita caminhos estreitos. “Eu sou isso, não posso fazer aquilo”. Todo rosto nos prega num muro de significações: “Eu sou isso, como posso pensar aquilo?”. Todo rosto cria uma zona de expectativas: “se sou isso, devo fazer aquilo”.

Conclusão: o rosto é uma criação exterior! Ele não é a priori, ele não é uma alma encarnada, ele é pura e simplesmente uma ficção que delimita fluxos. Ele é imposto de fora, ele é uma criação do poder. Nos tornamos rostos, por isso este conceito funciona muito mais como um verbo: Rostificar.

Rostificar é impor uma maneira de ser, de se mover, de falar, de se vestir, de amar, de viver! Um modo de pensar e de sentir! O rosto é a máscara que nos obrigaram a vestir! Mas por quê? Para quê?

A rostidade é usada toda vez que uma multiplicidade precisa ser organizada. Como assim? Um ponto central é definido como modelo, e outros rostos são distribuídos de acordo com este fundamento central. Para distribuir a multiplicidade é necessário algum critério, certo? Este critério estabelece uma hierarquia de proximidade e semelhança. 

E qual é o grande modelo? Qual o modelo que todos devem imitar mas do qual muitos permanecerão distantes? Todos nós sabemos: 

Homem-branco-europeu-racional-capitalista-cristão-heterossexual-magro…

Neste sentido, quais são os desviantes? A mulher, o negro, o latino, o asiático, o africano, a criança, o louco, o muçulmano, o judeu, o umbandista, o camponês, o indígena, o homossexual, o bissexual, o gordo, o transexual, e assim por diante…

O homem e a mulher estão em relação de hierarquia, brancos e negros, ricos e pobres, cristãos e  não-cristãos, europeus e não-europeus, e assim por diante.

A Rostidade é um detector de desvios. Ela avalia caso a caso, observando cada um, para colocá-lo “em seu lugar” dentro da sociedade. Da centro à periferia, a rostidade se aplica organizando as multiplicidades, assim como Platão organizou seus cidadãos na República. A rostidade é uma maneira de ordenar e definir o normal e o anormal, o bom e o ruim, o certo e o errado.

Neste sentido, alguns desvios serão tolerados, desde que no seu devido lugar, em guetos, à distância, enquanto outros não serão aceitos e serão excluídos, proscritos, eliminados. Mas todos, sem exceção, serão reconhecidos e catalogados.

Não existe exterior, não existe fora, não existe desconhecimento. Tudo será identificado e ajustado segundo o modelo imposto! Qual o objetivo da esquizoanálise? Ora, é óbvio: desfazer o rosto!

Texto da Série:

Mil Platôs

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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2 Comentários
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Gus
Gus
1 mês atrás

Vocês são incrivelmente didáticos aos conceitos que Deleuze-Guatarri põe para nós. Parabéns por toda essa multiplicidades de acontecimentos no saber:)