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Vamos pensar sobre o nome “Mil Platôs” e dele concluir sua fórmula, ou imagem de pensamento, n-1. Primeiro, a ideia de “platô” já vinha da biologia de Gregory Bateson, remetendo a uma zona de intensidades contínuas. Deleuze e Guattari propõem a substituição do livro feito de capítulos pelo livro feito de platôs, isto é, não há um ponto culminante, mas páginas percorridas por um continuum

O exemplo dado por eles é o do orgasmo. Não diremos que é ruim, é interessante. Mas todos os livros trabalham da mesma maneira, dentro do modelo arbóreo, transcendente, verticalizado. Propõe-se uma tese, disserta-se sobre ela até sua conclusão. Com sorte, chegamos ao orgasmo. No entanto, como seria um livro rizomático, imanente, cuja intensidade é distribuída e a conclusão já está na introdução? A proposta é essa – falar o tempo todo de tudo ao mesmo tempo. Uma espécie difusa e prolongada de orgasmo.

“Uma vez que um livro é feito de capítulos, ele possui seus pontos culminantes, seus pontos de conclusão. Contrariamente, o que acontece a um livro feito de “platôs” que se comunicam uns com os outros através de microfendas, como num cérebro? Chamamos “platô” toda multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender um rizoma.” Deleuze e Guattari, Mil Platôs, 1

Agora vamos pensar sobre o número “mil”. Trata-se, evidentemente, de uma hipérbole. É um exagero criado para dizer “múltiplo” de uma forma simples. Ou seja, estamos falando de um livro composto por uma multiplicidade de assuntos em relação. Rizoma é o primeiro assunto do livro não por ser mais importante, mas porque passa com muita clareza o pensamento da multiplicidade nela mesma, isto é, desierarquizada, conectável, heterogênea, disruptiva.

Alguém pode dizer que o livro é uma completa alucinação e não estará totalmente errado. A multiplicidade faz da realidade algo bastante delirante, ainda mais quando dois filósofos se propõem a olhar juntos para o sem-fundo diferencial que compõe esse real. Neste livro, não encontraremos teses metodicamente construídas com argumentos intrincados. Sequer entenderemos tudo o que está proposto ali. Trata-se de um outro tipo de livro, para uma outra maneira de filosofar:  

“Escrevemos este livro como um rizoma. Compusemo-lo com platôs. Demos a ele uma forma circular, mas isto foi feito para rir. Cada manhã levantávamos e cada um de nós se perguntava que platôs iria pegar, escrevendo cinco linhas aqui, dez linhas alhures. Tivemos experiências alucinatórias, vimos linhas, como fileiras de formiguinhas, abandonar um platô para ir a um outro. Fizemos círculos de convergência. Cada platô pode ser lido em qualquer posição e posto em relação com qualquer outro. Para o múltiplo, é necessário um método que o faça efetivamente” Deleuze e Guattari, Mil Platôs, 1

Mil Platôs é um livro circular que vai repetindo seus temas e se descentrando, variando de acordo com os territórios que atravessa. E isso é feito para que experimentos a intensidade de que a filosofia é capaz. Podemos lê-lo como um livro de filosofia qualquer, mas não entenderemos assim seu propósito, que é nos levar prudentemente ao delírio. Digamos que é um acesso à desrazão pelos caminhos tidos como mais racionais. É como embriagar-se com água pura.

Dois Tipos de Livro

Deleuze e Guattari nos dizem sobre duas formas de organizar um livro. Primeiro, o livro-raiz, clássico, representando o mundo, um ponto de partida que se abre em ramos, temas, capítulos, subtítulos bem delimitados. Pensamento que parte de uma unidade e chega no múltiplo para então totalizar-se. O problema é que estes são livros cansados, imóveis, centrados demais para corresponder à natureza mesma.

O modelo arbóreo enraizado de pensamento pode ser muito bem explicitado na lógica binária, “de um faz dois”. Do homem se faz a mulher, do são se faz o louco, do adulto a criança, do heterossexual o homossexual, da cultura a natureza, e assim por diante. É uma forma muito pequena de pensar quando contemplamos a diversidade de gêneros, capacidades, vivências, sexualidades, afetividades e narrativas. 

“A lógica binária é a realidade espiritual da árvore-raiz […]. Isto quer dizer que este pensamento nunca compreendeu a multiplicidade: ele necessita de uma forte unidade principal, unidade que é suposta para chegar a duas, segundo um método espiritual.” Deleuze e Guattari, Mil Platôs, 1

O segundo tipo é o livro-rizoma. A raiz principal abortou, partimos já da multiplicidade. O escritor perdeu seu pivô, o mundo deveio caos, mas o livro continua compondo um todo, sua imagem enlouquecida de mundo. Não mais a exaustão de um assunto, mas uma profusão de assuntos que se abrem uns sobres os outros. Não mais um livro que imita o mundo, mas um livro que faz rizoma com o mundo. Não mais a lógica binária, mas a multiplicidade de saída (n).

A rizomática não deixa de ser outro nome para a esquizoanálise, pois é o esforço de constituir o pensamento pela multiplicidade em vez de chegar nela por uma unidade de origem ou por uma representação ideal. Para falar disso, Deleuze e Guattari modificaram a escrita, pois não basta dizer mil vezes multiplicidade, é preciso fazê-la. Não escrever apenas como uma estrutura arborescente, onde todos os argumentos se desdobram de um fundamento inicial, mas fazer um livro que já começa no meio, em algum ponto de uma linha que vai se derivando em vários outros caminhos.

n-1

“Na verdade, não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira mais simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída, escrever a n-1. Um tal sistema poderia ser chamado de rizoma.” Deleuze e Guattari, Mil Platôs, 1

O que significa essa formulação? Podemos dizer que n-1 é a fórmula lógica do rizoma: n de multiplicidade, da qual subtraímos a unidade. Dito de outra maneira, é a multiplicidade da qual rejeitamos o elemento unificador. Pode ficar difícil de entender, mas o que eles estão dizendo é que não há uma estrutura única capaz de dar conta da multiplicidade. Ela sempre está lá como princípio que recusa a unidade, que funciona subtraindo a unidade.

n-1

Robert Rodgin

A lógica binária da raiz-árvore funciona segundo a fórmula: 1 faz 2, faz n, ou ainda 1+1+… = n. Uma raiz que cresce e se espalha em ramos. Todo o pensamento dominante está estruturado dessa maneira. A diferença é um predicado e não um sujeito, a multiplicidade é a chegada e não a partida. Pensem nas armadilhas dessa maneira de conceber a vida. Apenas um passo para a eugenia, o higienismo, o nacionalismo, o puritanismo, em suma, o fascismo. 

Poderíamos ainda pensar na multiplicidade com a fórmula n+1. Mas não se chega à multiplicidade pela soma das unidades. A questão é que não há unidade senão como imaginação de um todo. A multiplicidade n não é efeito, conclusão, consequência, ela é causa, sujeito, princípio, premissa. O monismo é compreensível, mas desde que seja pensado de forma expressiva, tendo o múltiplo como princípio – eis a tese de Deleuze sobre Espinosa. Se n = 1, então 1 é múltiplo.

Assim, a fórmula mais interessante para pensar a multiplicidade é n-1: o múltiplo é aquilo de que se subtrai a unidade, é aquilo que tenciona toda unidade. Contra a única maneira de organizar, a única maneira de pensar, a única maneira de viver, a multiplicidade responde n-1, isto é, múltiplas maneiras menos a única. Assim, a força diversa do múltiplo está justamente na pressão que exerce sobre a unidade.

Toda a epistemologia de Deleuze e Guattari é um esforço para pensar a multiplicidade por ela mesma, sem nunca recorrer a um fundamento-raiz. Por esse motivo, a rizomática que eles propõem é também uma micropolítica, uma pragmática, uma estratoanálise, assim como uma ética da diferença e uma vida nômade. O rizoma não se deixa conduzir ao Uno, ele tem pavor da unidade, por isso podemos defini-lo como n-1. 

Texto da Série:

Mil Platôs

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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2 Comentários
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Carlos Quaresma
Carlos Quaresma
2 anos atrás

Bicho é papôco desssufoco e menterial isso

Angelo DIniz
Angelo DIniz
8 meses atrás

Eu ainda não consigo tecer comentário, o que certamente seria válido mas no limite do que posso registro que isso me ativa.