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O supremo bem dos que buscam a virtude é comum a todos e todos podem desfrutá-lo igualmente"

EspinosaÉtica IV, prop. 36

Em um primeiro momento, pode parecer estranho usarmos a palavra comunhão, afinal, se ela foi totalmente apropriada pela religião, não seria um absurdo ainda se falar disso? Ora, tem um bom motivo para Espinosa falar da possibilidade de uma comunhão, simplesmente porque, em sua filosofia, isso é possível ao Sábio.

Aliás, a própria palavra religião, por sua etimologia, ainda nos serve: re-ligare, do latim, significa se ligar novamente a algo maior. Ou seja, qual o objetivo dos ensinamentos religiosos? Nos (re)aproximar de Deus. E qual seria a Salvação que a religião nos promete? A comunhão com Deus.

É nesta hora que os ateus de carteirinha torcem o nariz para esta ideia, e realmente entramos aqui em um terreno bem delicado. Mas lendo Espinosa com cuidado podemos afirmar com todas as letras: o Filósofo Holandês acreditava profundamente em tudo isso! E mais: ele acreditava deter as chaves desta salvação!

Qual seria aqui a grande diferença entre ele e os profetas? Ou melhor, o que faz de Espinosa um filósofo e não um teólogo? Simples, ele não fala de outros mundos! Se a Religião Tradicional fala que a Salvação está na Transcendência de Deus, que escolheu seu povo e instituiu leis inquestionáveis; a Religião Imanente de Espinosa fala de uma Salvação em um Deus-Natureza, neste mundo.

A diferença é abissal: a comunhão de Espinosa não passa pela Bíblia ou por qualquer outro livro sagrado. A comunhão não significa seguir as regras da Sinagoga ou da Igreja, tampouco as de qualquer pastor ou autoridade. A Comunhão de Espinosa passa pela Razão que compreende as leis de Deus inscritas na própria Natureza, neste mundo. A comunhão está no conhecimento desta realidade, na relação universal, necessária e determinada entre as coisas.

Mas vamos entender melhor: o que significa esta palavra, Comunhão? Ela tem uma raiz indo-europeia: kumoin, que significa “algo compartilhado por todos”. Ou seja, o comum é aquilo que pertence a todos e a comunhão é o ato de tornar comum. Desta maneira, comungar, como um verbo, é habitar o mesmo espaço que Deus, é partilhar da essência divina, é agir junto-com Deus. Por isso a religião seria este religar-se a Deus.

Podemos ser ainda mais claros: através da comunhão, o Sábio está em Deus, Deus está nele, ele passa a partilhar sua existência com Ele! Sabe aquela sensação de que fazemos parte de algo maior? Pois é, o Sábio realmente percebe isso. Afinal, na comunhão espinosista, ele se dá conta de que partilha da mesma natureza divina.

O que o Sábio percebe que nós não percebemos? Que todos nós somos parte da Natureza Naturante, da potência de criação e expressão divina, não somos meros objetos, criaturas criadas, partes passivas e indefesas, somos, ou melhor, podemos nos tornar, uma parte ativa! Eis a comunhão. Não precisamos esperar como bons cordeiros, pacientemente, apenas seguindo as leis da bíblia, aguardando a chegada do reino dos céus. Deus já está aqui! Comunhão pode começar aqui e agora, com este mundo!

É exatamente isso que poderíamos chamar de Entusiasmo: en-theos, em grego, significa ‘com Deus em nós’! O entusiasmo é a sensação de que nossas ações estão impregnadas da potência divina, da capacidade divina de pensar e de agir. Afinal, não disse Jesus: “Vós sois Deuses”? Pois é, concordamos com esta afirmação, nós expressamos Deus, nós somos Deus se manifestando aqui e agora, nossa ação racional é uma ação divina. O Sábio vive em constante entusiasmo, ele adquiriu a compreensão das leis imanentes deste mundo, o que lhe permite conhecê-lo e expressá-lo mais e melhor.

Esta é a lição de Espinosa, não precisamos sair deste mundo para nos comunicar com Deus, não precisamos deixar este mundo para encontrá-lo, não precisamos maldizer este mundo para exaltá-lo. Se estamos falando de um Deus imanente, quanto mais temos ideias adequadas, quanto mais compreendemos a maneira da natureza se expressar, mais nos tornamos eternos, mais comungamos da presença e atividade divina aqui e agora. O Sábio é apenas aquele que trilhou este caminho por mais tempo.

Espinosa ensina a comunhão, ele quer nos religar, sim, mas à terra! Ou seja, o profeta buscava a Salvação em outro mundo! O Sábio encontrou a salvação neste, mas por meios completamente diferentes. Aquele usa a fé e a obediência como meio, o sábio espinosista usa o pensamento racional e a ação. Esta é a diferença entre uma Salvação Transcendente e uma Salvação Imanente. Aquela tem um prazo de realização duvidoso, esta se faz em ato aqui e agora.

Texto da Série:

O Sábio

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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4 Comentários
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Jorge veiga
Jorge veiga
1 ano atrás

Maravilha

Rafael Mateus
Rafael Mateus
1 ano atrás

Pena que esse discurso não foi o que prevaleceu na história e nem o que prevalece hoje!
A espiritualidade não é monopólio de ninguém, e de nenhuma religião!
As pessoas acham que é preciso estar dentro da igreja, para alcançar Deus!

|Hortencia Nobre
|Hortencia Nobre
1 ano atrás

Muito bom texto, nos faz refletir que o amor, as boas práticas vão muito além de religiosidades… Gostei demais!!!!

luiza
luiza
1 ano atrás

muito bom! estou aprendendo muito com voces