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De vez em quando, acontece. Não há por que sentir vergonha. É verdade, ninguém esperava. Não houve preparo, rolou naturalmente. Quando paramos para pensar um tempo depois, percebemos que as condições já estavam dadas. Porém, ali, no momento, não tinha como saber, a coisa permanecia oculta, subjacente, esperando pelo momento oportuno até que, de um dia pro outro, meio do nada, só se fala naquilo. Talvez nunca tenha lhes ocorrido, mas na nossa história é assim: de repente, nascem perguntas que ninguém ainda havia feito.

No ocidente eurocentrado, “o que é ser homem?” é uma destas perguntas recém enunciadas. Pensem bem, ela é muito recente! É claro que já perguntaram muitas vezes o que é o Homem, daquela maneira ontológica que a filosofia clássica gosta, mas não se trata exatamente da mesma pergunta. A pergunta sobre os sentidos do ser é diferente da pergunta sobre a masculinidade. Só começamos a nos perguntar o que significa ser homem, nos termos de gênero, quando as mulheres começaram a dizer: “não somos isto que vocês querem fazer de nós”. Assim, podemos concluir que a tal pergunta é posterior à primeira onda feminista. Foram as mulheres que romperam a forma, e os homens não tiveram escolha senão começar a questioná-la também. Eles fizeram birra, claro, mas eventualmente começaram a se perguntar: o que é ser homem, afinal? Resumindo, nesse campo os homens definitivamente não são precoces.

Logo que a pergunta foi enunciada neste novo sentido, uma enxurrada de respostas se seguiu, como costuma acontecer. Nós ficamos envergonhados em admitir que não sabemos responder perguntas tão banais. Encurralados, alguns diziam que homem é quem tem pênis, repetindo ingenuamente os manuais de biologia; outros, ainda insatisfeitos, diziam que ter pau não era suficiente, para ser homem era preciso ser macho, mostrar-se forte, conquistador, destemido, expressar apenas atributos masculinos. E a discussão ficou estagnada nessas respostas por bastante tempo. Ainda hoje, tentam basear novas respostas em ideias ignorantes, dizendo se tratar da pílula vermelha.

Voltando à nossa breve história, o desenvolvimento coube, mais uma vez, não aos homens, mas às pessoas que, dando continuidade às lutas feministas, agora começavam a abandonar as velhas categorias da diferença sexual: travestis, transexuais, não-bináries, bissexuais, queers, além de uma parcela das lésbicas e gays (principalmente sapas, butchs, bichas e drags, desde muito deslocadas nos papéis de gênero). Na própria pele, elas sentiam que o próprio sistema sexo/gênero poderia restringir o alcance das pautas feministas e, por esse motivo, levantavam a voz, dizendo: “homens e mulheres são produtos de uma tecnologia social normativa e, enquanto tais, resultado de uma redução ontológica violenta”. Trocando em miúdos, elas retomavam a pergunta dos antigos, transfigurando a resposta: ser algo no mundo é muito maior do que nos é permitido exercer nos papéis de gênero – é o que diziam. Depois de ouvir e teimar um pouco, os homens finalmente concordaram, dizendo: “parece que podemos agora dar o cu em paz, isso não nos faz menos homens” e, assim, entenderam errado, de novo.

O prazer anal é mais antigo que a ontologia. A celebração desse orifício acontece desde sempre entre homens, mulheres e também entre aqueles que abandonaram o binarismo. O mais interessante dessa prática é que o ânus, por ser um centro erógeno universal, tem nos forçado todos a confrontar os limites impostos pela diferença sexual. Todo mundo tem cu – isso faz com que os papéis sexuais tradicionais sejam totalmente reversíveis. Além disso, não há possibilidade de aprisioná-lo no trabalho reprodutivo, assim como é difícil encaixá-lo na imagem romântica. O gênero, que já não existe por si, é absolutamente negado pelo cu e, se este foi o primeiro dos órgãos a ser privatizado, então chegou a hora de tomar de volta os meios de produção.

A esta altura, o macho em crise, munido de novas ferramentas conceituais sobre sua masculinidade, tenta afirmar que pode dar e permanecer o mesmo. Alguns usam de eufemismos, tipo “homem também chora”, mas não se enganem, a questão é a mesma. Trata-se de um jeito manso de continuar afirmando a necessidade de adequar-se à forma, ainda que admitindo a possibilidade de novas práticas. O que esses homens não percebem é que, nesta mudança de perspectiva, estão perdendo a parte mais interessante da questão, que é a potência revolucionária do cu, enquanto abertura na forma homem. 

De onde vem esse desejo obsessivo de se manter homem? Por que essa enorme preocupação em continuar sendo reconhecido como macho? Enquanto estrutura subjetiva, o homem é justamente a forma vazia que nos aprisiona em um conjunto de comportamentos que dificultam o acesso à sensibilidade, aos vínculos afetivos, à vulnerabilidade, entre tantas outras possibilidades. O que ganhamos ao negar a pressão normativa que a imagem do homem exerce sobre nós? Enquanto continuarmos nessa perpétua negociação com o “ser homem”, não faremos mais do que reafirmar a sua estrutura, ainda que pelo avesso.

É por isso que trazemos esta provocação: dar o cu faz de todos nós menos homens. Não importa se você dá pra alguém ou enfia carinhosamente os dedos quando toma banho – assumir-se menos Homem é reivindicar uma brecha nesta identidade, libertando-se das neuroses íntimas e abrindo-se para novas possibilidades subjetivas. O que é mais curioso é que “dar o cu te faz menos homem” é uma frase conservadora na boca dos homens mais escrotos, que, pronunciando palavra por palavra, têm a intenção de nos colocar prostrados frente ao tribunal do gênero, cultuando a resplandecente imagem sacra do macho. Vejam, além de subversivo, o caminho mais curto é concordar: somos menos homens, mas quem disse que isso é ruim? Assim, arrancamos destes hipócritas o cerne de seu argumento e transformamos a acusação em libertação.

Tanto quanto o gênero, o sexo não existe em si, mas é produzido de forma sofisticada por relações sociais e políticas. Sendo assim, o sexo anal é uma fábrica de reinvenção, porque se dá numa zona livre das imposições de gênero.  É claro que não é a única maneira de reinventar-se, mas é um ótimo começo. É sempre bom lembrar: o corpo não veio com manual, foi o regulamento que nos foi forçado goela abaixo.

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Carolayne
Carolayne
1 ano atrás

Que texto maravilhoso, Rafael! Acabei de encontrar esta página e quando vi seu título, confesso que de início achei muito curioso e até engraçado, porém, quanto mais eu lia, mais gostava de cada palavra lida e dessa reflexão necessária sobre tantos tabus que envolvem a sociedade geral. Obrigada pelo texto!

Igor Arnhold
Igor Arnhold
1 ano atrás

Análise cirúrgica! Eu, como homem gay, nunca tinha percebido como essa obssessão que existe em torno do ideal de “macho”, até dentro do universo LGBTQIAP+, na verdade é um tesão pelas colonizações normativas do corpo. Toda essa política do sexo é capaz de condicionar nossos desejos e a relação com nosso corpo, e o sexo anal é uma forma de retorno ao puro prazer, sexo democrático, revolucionário e transvalorado.
Fiquei curioso para saber mais sobre que outros tipos de relação corpo-prazer podem desfamiliarizar nossos paradigmas atuais. Muito obrigado pelo seu filosofar!

Lúbia Carla
Lúbia Carla
1 ano atrás

Maravilhoso… ❣

Alex Batalha
Alex Batalha
3 meses atrás

É coisa de viado sim. Dar o cu é viado e ponto final. Cada um faz oque quer, mas dar o cu é viado

Rodrigo Albuquerque Pereira
Rodrigo Albuquerque Pereira
8 dias atrás

Eu acredito que não faz menos homem, eu dou o cu não deixei de ser masculino gosto do prazer anal