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Conta-se ter dito Heráclito a estranhos que o queriam visitar e espantaram-se ao vê-lo aquecer-se junto ao fogo: ‘podeis entrar, aqui também moram deuses'” – Gerd Bornheim, Filósofos Pré-Socráticos

O Entusiasmo é um dos afetos mais intensos para nós. Ele começa com uma suspeita, se transforma em um fato físico, e por fim se desdobra em consequências filosóficas e psicológicas profundas. Podemos começar pela origem da palavra, que é grega: enthousiasmos significa en-theos, ou seja, ter um deus interior ou estar possuído por deus(es). Inicialmente, esta definição lembra uma espécie de possessão e, num certo sentido, não está errado. Mas onde queremos chegar? O entusiasmo é uma sensação que fala de algo maior que habita em nós, algo do exterior, algo que não é nosso, mas ao mesmo tempo está em nós e nos pertence. Não como nos filmes de terror onde um demônio nos possui e nos prejudica, pelo contrário, estamos falando de algo magnificente, belo, poderoso.

Vamos começar com alguns exemplos próximos:

  • Existem milhares de milhares de organismos em nosso corpo, mais do que células humanas
  • O ar que respiramos está em constante troca com o ambiente ao nosso redor
  • Os animais todos se interpenetram, por meio da alimentação e da reprodução

Podemos ir um pouco mais distante:

  • Um Vulcão que explode do outro lado do mundo pode afetar o clima em todo o planeta.
  • Um terremoto no meio do oceano pode inundar cidades inteiras
  • O dióxido de carbono na atmosfera e o aquecimento dos mares afeta a vida marinha e terrestre em sua totalidade

Tudo está em tudo! Tudo reage com tudo. E podemos ir ainda mais longe:

  • Grande parte da água do nossos oceanos veio de meteoros que Júpiter desviou em direção à terra
  • O Sol, nosso astro rei, brilha com constância e banha a terra com energia contínua há bilhões de anos.
  • A Lua é tão grande e está tão próxima que influencia gravitacionalmente nossas marés

Tudo se interpenetrando, tudo junto, tudo se implicando em todas as outras coisas. Estas são as proposições de inúmeros filósofos do passado, de inúmeros teólogos e místicos e hoje de renomados cientistas. Todos eles dizem a mesma coisa: tudo está em tudo, tudo se relaciona com tudo. Mas podemos ir ainda mais longe: se olharmos com um telescópio para a constelação de Touro veremos a Nebulosa do Caranguejo. Esta nebulosa, catalogada como Messier 1, foi observada pelo famoso astrônomo Charles Messier. A forma de Caranguejo se dá pela rápida expansão dos gases que antes formavam a estrela e foram ejetados por uma explosão conhecida como Supernova, que aconteceu muitos anos atrás, em 1054. Naquele ano, ela brilhou no céu com tanta intensidade que podia ser observada durante o dia, a tal ponto que o evento não pôde passar despercebido, e foi catalogado por astrônomos chineses e árabes de seu tempo.

Um evento ao mesmo tempo cataclísmico e criador. Isso porque tudo o que existe na Terra, todos os elementos que formam todas as coisas em nosso planeta, vieram de explosões de uma ou mais estrelas no passado. Somos todos feitos do colapso des estrela sobre si mesmas, que explodiram com uma força inimaginável, e espalharam os elementos formados em um momento dramático do nosso universo. As estrelas são a cozinha cósmica da criação, elas espalham os elementos que depois se tornam essenciais para a vida existir. Quem foi que nos criou? Deus? Então precisamos chamar Deus de Supernova, pois apenas ela pode realmente dizer “faça-se a luz”.

Por meio da explosão, os elementos se espalham pelas redondezas da estrela morta, afetando tudo em seu entorno. Assim, podemos dizer que a nossa tabela periódica é a história da violência das supernovas, que geraram os elementos que conhecemos e que nos compõem. Aliás, a vida na Terra consiste nestes elementos abundantes e quimicamente ativos do cosmos. Nós não somos feitos à imagem do cosmos, mas certamente somos quimicamente semelhantes, porque 97% dos átomos do nosso corpo vieram de estrelas que explodiram no passado. Ou seja, uma estrela precisou morrer para que pudéssemos viver.

Somos poeira das estrelas assumindo uma nova forma, e ganhando consciência. Somos modos da natureza, de Deus, das estrelas, do universo. Espinosa ficaria muito alegre com estas afirmações, talvez decidisse escrever uma Ética à maneira dos Astrônomos. Sim, ele concluiria, somos as estrelas assumindo outra feição, outra conduta, novos afetos, e tudo é apenas continua sendo uma maneira do Universo se afirmar. Brilhamos em tons distintos, mas somos feitos da mesma matéria que as estrelas, e mais, somos conscientes disso! Sabemos que somos feitos de poeira de supernovas, que nos alimentamos da luz do Sol, e podemos observar as estrelas brilhando no céu.

Quando percebemos que, apesar da distância, as estrelas estão muito mais próximas de nós do que imaginávamos, somos preenchidos de entusiasmo! Acontece que agora temos mais evidências para corroborar com o que há milênios já sentíamos em nosso íntimo.  Novamente se confirma a frase: tudo se interpenetra, porque as estrelas vivem em nós. O espírito de Deus, ou das estrelas, que antes queimava com violência no núcleo das estrelas supermassivas, agora está pulsando em nosso sangue. Nós somos possuídos por esta força, eis o entusiasmo em toda a sua potência. Temos a sensação de estar possuídos novamente por Deus, mas agora é um Deus que habita e se mostra neste mundo, é um Deus imanente, que sopra através da galáxia até se encontrar em nosso corpo.

Não estamos falando por analogias, é real: Deuses habitam a nossa realidade, e nossos pensamentos também. O estudo da natureza se torna então a possibilidade de pensar o que Deus pensa, como a possibilidade de entender melhor o que se passa nele, quais eram os seus planos na criação. Não um Deus exterior, que nos recompensa com o céu ou nos ameaça com o inferno, estamos falando de estar possuídos por esta força divina, onde sentimos toda a natureza se expressando, das estrelas de nêutrons ao ar que respiramos, passando pelo efeito estufa em Vênus e as luas de Júpiter. Um Deus que está plenamente no mundo, que se mostra absolutamente e diz: estou aqui, por mais que sua linguagem seja por vezes difícil de se entender.

Que ousadia o finito querer falar do infinito e tentar compreendê-lo, mas não é bem assim, porque o infinito foi admitido no seio do finito. Somos o ponto onde a infinitude se faz indivíduo. Cada átomo em nosso corpo tem uma história incrível de 13,8 bilhões de anos para contar. Não é impressionante? Tudo o que vive em nós foi também uma força exterior: o alimento que ingerimos, a água que bebemos, cada ideia que temos, cada coisa que vemos, tudo já esteve em outros corpos e no espaço interplanetário, assim como a luz que atravessou 150 milhões de quilômetros do Sol até aqui, para se transformar em eletricidade e se refletir na tela deste computador. Tudo nos atravessa neste momento, toda a eternidade concentrada em um único ponto, eis o Entusiasmo. Somos apenas uma dobra, uma pequena dobra momentânea no tecido de cosmos. Somos a eternidade se manifestando neste momento, pena que dura tão pouco.

– Nebulosa do Caranguejo fotografada pelo telescópio Hubble

 

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Luiz
Luiz
11 meses atrás

Esta percepção ficou mais forte em mim quando começaram a aparecer as imagens do James Web. “Contemplar o infinito” me faz sentir nada e tudo ao mesmo tempo.