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Dâmocles era um grande admirador de Dionísio, o tirano de Siracusa. Não perdia a oportunidade de agradá-lo, dizendo como invejava sua posição afortunada, reinando acima de todos, agraciado pelos privilégios mais variados.  Percebendo a empolgação do jovem rapaz, Dionísio o convidou a ocupar seu lugar à mesa por uma noite. Dâmocles, lisonjeado, aceitou sem pestanejar. Então, o tirano mandou preparar um grande banquete no qual fossem atendidos todos os desejos daquele que ocuparia seu lugar. Encantado, Dâmocles sentou-se no majestoso trono que lhe fora reservado, mas, logo olhou para cima e percebeu que ali haviam pendurado uma espada dourada cuidadosamente afiada, sustentada por não mais do que um fio de cabelo, reluzindo sob a luz bruxuleante das velas. A mesma luz reluzia nos olhos de Dionísio, que lhe perguntava: “ora, perdeu o apetite?”.

Esta anedota foi popularizada por Cícero no primeiro século antes de Cristo. Desde então, muitas interpretações foram propostas. Em geral, costuma-se interpretá-la pela perspectiva de Dionísio, interessado em dar uma lição de moral em Dâmocles, mostrando que seu grande poder vem com um alto custo: não se pode ocupar o seu lugar sem sentir-se o tempo todo ameaçado de perdê-lo. Os humanistas europeus se serviram dessa leitura para fazer refletir todos aqueles que perseguiam honrarias, riquezas e posses. Hoje, no entanto, nos perguntamos o que existe para além da perspectiva do papai. Qual é a perspectiva do subalterno?, se é que conseguimos escutar sua voz.

David Cooper, psiquiatra antipsiquiatria, cita a anedota no livro “A morte da família”, logo após resumir em quatro pontos os operadores do que a ideologia burguesa chama de família, trazendo consequências estupidificantes para todos os envolvidos:

  • A família supõe a incompletude de seus membros, transformando a dependência em necessidade. Os familiares grudam-se uns aos outros, mas isso raramente acontece por amor. A proximidade excessiva se impõe cerceando as possibilidades de autonomia.
  • A família é especialista em estabelecer papéis para seus membros, restringindo as possibilidades de cada um tornar-se outro. A criança nasce já enquadrada em expectativas bastante específicas, condicionada a desejar o desejo dos pais.
  • A família cumpre a função de socialização primária dos sujeitos, mas  instila a coerção em doses muito superiores às necessárias. Sobreviver em uma sociedade policial não é fácil, mas em vez de mitigar, a família se satisfaz em ser um de seus centros de poder.
  • A família é muito eficaz na contenção do desejo, porque funciona à base de um elaborado sistema de tabus. As leis familiares são limites de terror espectrais, não enunciados, abstratos, mas concretamente punitivos. 

Essas ideias sobre a família nos fazem pensar a sociabilidade geral como forma coercitiva e nos permitem retornar à anedota por essa perspectiva. Dâmocles enuncia seu desejo e é acolhido, mas não sem um intrincado mecanismo no qual a própria possibilidade de efetuá-lo torna-se absurda: “a espada de Dâmocles tomba sobre a cabeça de todo aquele que preferir as suas próprias escolhas e as suas próprias experiências em vez daquelas prescritas pela família e pela sociedade em geral” (Cooper). O pior é que não sabemos exatamente quando a espada pode despencar, mas vivemos morrendo de medo de que isso aconteça. É muito comum que acabemos por podar a nós mesmos, descartando qualquer movimento brusco, nos esforçando ao máximo para evitar o mínimo balanço da lâmina.

Essa discussão está muito próxima das ideias estruturalistas propostas por Lévi-Strauss quando discute a universalidade do tabu do incesto ou mesmo de Freud quando propõe o complexo de édipo como conflito central na constituição do sujeito, mas não precisamos ir tão longe nos exemplos polêmicos para perceber o quanto nosso desejo se forma em uma relação de ameaça: basta perceber o quanto temos dificuldade de tocar e ser tocados pelos outros! Toda interação corporal não mapeada pelo familiar é prontamente percebida como “sexual”, no sentido pejorativo, isto é, como interação além dos limites, capaz de transformar um cafuné em algo absolutamente transgressor. 

Quando adultos, temos dificuldade de estabelecer vínculos significativos com outras pessoas além das poucas que compõem nossos círculos mais íntimos, porque a proximidade com o desconhecido é sentida como uma invasão. É evidente que precisamos de limites para nos relacionar bem, mas não deixa de ser triste que eles estejam postos de maneira tão vigilante antes mesmo das relações acontecerem. A família é o que regula o dentro e o fora, discriminando o campo dos afetos por meio de critérios alheios ao desejo, baseados na expectativa de regularidade imposta por todos. Além disso, a familiaridade tende a crescer conforme o tempo passa, fazendo cada um fechar-se sobre imagens formadas na relação espelhada de uns nos outros. 

Quem se senta à mesa de Dionísio e aceita seu jogo precisa sustentar o incômodo de fazê-lo sob o balançar da espada. Mesmo sem saber se a espada cairá realmente, os outros dirão: “este perdeu a cabeça”. Perseguir um desejo que escapa ao que se impõe como norma depende dessa ousadia que é percebida como insensatez e depreciada como rebeldia gratuita. No entanto, não sentamos à mesa de caso pensado, apenas para desafiar à lei. Não, o que buscamos é dar lugar aos nossos desejos, apostando em maneiras um pouco mais espontâneas, insistindo na ideia de que a vida pode comportar mais do que as pequenas alegrias familiares. 

A espada de Dâmocles é um recurso astuto, pensado para conter o que, por natureza, não pode ser completamente contido: o desejo se movimenta até onde não pode. O amor é uma das mais expressivas manifestações de seu movimento ousado e é por isso que se encontra tão fortemente amarrado em estruturas normativas. Desejar ampliar o contato com os outros é socialmente desordenador. Não é força de expressão, nem mero fato – muitas pessoas enlouquecem por amor, extrapolando todos os limites. As pessoas na sala de jantar estão preocupadas em nascer e morrer, não em amar. Ao menos por alguns minutos, cantemos a história de Dâmocles apaixonado para, quem sabe, inspirados em sua inconsequente loucura, encontrar modos de engrandecer a vida. 

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Gabriela
Gabriela
7 meses atrás

que texto incrível! Parabens cara, explicação maravilhosa e rica, sem mta enrolação!!

Fe, o lipe
Fe, o lipe
4 meses atrás

não gostei, asmei ! excelente reflexão.