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Uma freira largou o hábito depois de se apaixonar por sua médica; um terapeuta deixou de atender sua paciente para convidá-la para sair; um amigo chamou o outro para confessar que estava saindo com sua ex-namorada; um conhecido ficou indeciso entre dois irmãos e acabou ficando com ambos; uma senhora viveu a primeira paixão por outra mulher depois de 40 anos de casamento; duas companheiras tiveram um caso de amor com a vizinha; dois homens se conheceram no grupo de oração da igreja e foram expulsos dela. Não, estes relatos não foram inventados e existem inúmeras situações como estas acontecendo o tempo todo. Talvez você já tenha vivido algo parecido. Que força estranha é essa que nos invade e desloca a ponto de pensarmos que estamos loucos?

Já fazem alguns milênios que temos chamado de amor. Mas este nome simples esconde uma pluralidade de maneiras de vivenciar o afeto. É por isso que tantas vezes procuramos outras palavras para descrever essa espécie estranha de amor que sentimos por outra pessoa e que acontece como uma espécie de enlouquecimento. Hoje costumamos chamar de paixão, os gregos antigos o chamavam de Eros: uma forma ardente de desejo que estremece o amante, colocando-o em um estado de contradição tal, que não pode mais continuar sendo quem é. Para descrever este afeto à altura de seus efeitos, os poetas usavam o nome deste deus, Eros, para se referir à espécie de amor que nos toma de assalto e desorienta, alterando radicalmente nossas perspectivas. Dele deriva a palavra erótico, para além da mera sexualidade, como vivência amorosa intensa, conturbada, inevitável.

Tão antiga quanto essa forma enlouquecida de amar é o discurso contrário a ela. Em um dos diálogos de Platão, Sócrates conversa com Fedro, que vem empolgado após ter ouvido um discurso de Lísias, no qual este garantia que a melhor coisa era relacionar-se com alguém que não estivesse tomado por Eros. Ele dizia que “o apaixonado é mais de dar pena do que inveja”, porque ele não sabe o que quer, não tem juízo, não sabe colocar limites, sofre por coisas inexplicáveis e espalha sua dor entre os outros, causando muitas desavenças. Ao ver o jovem empolgado, Sócrates faz graça, dizendo que esse discurso sobre a moderação é antigo e foi apenas reelaborado em frases bonitas. A princípio, o filósofo se coloca de acordo com as ideias gerais, mas se interrompe ao ouvir a voz divina que o acompanha desde a infância e que, de vez em quando, lhe salta à consciência como sinal de que é preciso investigar melhor suas opiniões e ações. Então, Sócrates começa a avaliar o discurso por outra perspectiva: ora, se Eros é um deus, então não pode ser, em si mesmo, um mal.

Surpreendentemente, Sócrates começa a fazer o elogio dessa forma de amor que se parece com a loucura, ele diz a Fedro: “os maiores bens, quando dados por graça divina, nos vêm mediante a loucura”. Como exemplos, ele traz a fala misteriosa das profecias, os estranhos rituais de cura, a inspiração das musas e conclui: Eros é uma quarta espécie de loucura, tão divina e importante quanto as demais. Se as profetisas do templo de Delfos nos comunicam em pedaços enigmáticos as ideias de Apolo, se os discípulos de Dionísio organizam ébrios ritos de purificação, se os poetas escrevem suas epopeias por inspiração de Calíope, então não devemos considerar a inspiração erótica também como uma benção? Se é assim, então qual seria sua função?

Na filosofia platônica há algumas respostas diferentes, mas todas elas estão relacionados ao que se costuma chamar de dialética erótica, isto é, um processo de abertura causado por Eros, que coloca o amante em busca de novas ideias, capazes de abarcar de maneira mais ampla, em uma visão de conjunto, aquilo que se mostra na experiência dispersa. Em outras palavras, a experiência amorosa produz uma desorientação capaz de lançar o amante em direção a ideias mais verdadeiras. Ou seja, a intensidade do contato com o belo humano, é capaz de excitar o pensamento em relação ao belo divino. Assim, a grandeza da paixão está diretamente relacionada à experiência da loucura, porque ocorre como suspensão dos contornos dados pela vida cotidiana, inspirando no amante uma perspectiva mais altiva da totalidade, que o faz ir além do que estava dado e era conhecido. É por isso que Platão costuma associar o amante e o filósofo, na medida em que ambos tentam traduzir eros em logos, isto é, o incompreensível em inteligível, o não saber em saber, o amor em ideias.

Indo além de Platão, podemos nos perguntar sobre essa estranha semelhança entre o amor e a filosofia. O pensamento filosófico muitas vezes nos leva à uma certa alucinação, não é? Quando fazemos perguntas absolutamente elementares e, em última análise, impossíveis de responder – o que estamos fazendo exatamente? Quem, em sã consciência, pergunta-se o que é o ser? Há no filósofo uma certa disponibilidade ao pensamento desvairado, experimentado nos limites do saber, que o leva a questionar tudo o que conhecia até então e reorganizar as ideias em torno de uma visão mais ampla das coisas. Como o filósofo começa a enlouquecer? Assim como o amante, ele encontra no mundo o motivo para pensar, mesmo sem saber exatamente como. Na vida e no pensamento, o amor às vezes surge como exigência de que as coisas sejam reavaliadas.

Todos nós podemos fugir de Eros: não é fácil, mas é certamente possível. Podemos fazer pouco caso dos loucos de paixão, nos protegendo daquilo que nos modificaria radicalmente. Da mesma maneira, podemos recusar a filosofia, deixando as ideias bem protegidas sob o manto da opinião ou da convenção. No entanto, será difícil deixar de sentir que as coisas todas são muito maiores do que nossa capacidade de compreendê-las e, por essa alucinante grandeza, por olhar demais para as estrelas, estaremos sempre correndo o risco de cair no buraco, a partir do qual precisaremos voltar a pensar. O filósofo é o amante de um saber que está fadado a jamais possuir; o amante é um filósofo porque conhece um amor que não consegue explicar. Neles, a loucura se manifesta como o movimento de uma alma que se recusa a prender-se em coisas pequenas.

 

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Raimunda Rodrigues Pinto
Raimunda Rodrigues Pinto
11 meses atrás

Muito, quero mais.