O filósofo socrático é um tipo desconfiado. Por esse motivo, ninguém o procura para confirmar as opiniões previamente estabelecidas, mas para tensioná-las. Às vezes ele aparece sem ser chamado, estava de passagem, mas não pôde deixar de ouvir a conversa. Questionar o que se pensa saber é o seu fazer filosófico, porque considera o saber pressuposto como primeiro obstáculo no caminho para pensar bem. Aquilo que acreditamos saber pode nos atrapalhar a perceber o que ainda não sabemos e, assim, impedir uma perspectiva mais ampla das coisas.
Vem daí a ideia de que a filosofia se opõe radicalmente à opinião. No entanto, esta é uma conclusão apressada. Na realidade, a opinião é a ocasião para que a tensão do pensamento se estabeleça: ela começa a se tornar um problema apenas quando se sedimenta na forma de pré-conceitos. Ainda assim, é justamente a existência de um resquício conceitual que justifica o esforço com que o filósofo intervém. A opinião é um rastro que pode nos levar mais longe na compreensão do que se passa – mas isso não costuma acontecer sem um processo de constrangimento das certezas previamente assumidas. Não é possível questionar algo tido como certo sem causar algum incômodo – é por isso que algumas pessoas reviram os olhos ao ver o filósofo sentar à mesa.
Aos ouvidos de um tal filósofo, a frase pronta, que se repete sem pensar, soa como um convite para o questionamento: ali, no meio de uma conversa banal, ele pode surgir fazendo uma pergunta destrambelhada. Por mais que ele sinta algum prazer em ver o sabe-tudo embaraçado nas próprias ideias, sua intenção não é causar um tumulto gratuito, o que ele tenta é elevar os preconceitos à condição esguia dos conceitos. Questionando a imagem de um saber que se calcifica em certeza, uma filosofia de inspiração socrática surge da aposta de que o conhecimento não é algo que se conquista definitivamente, mas um destino pelo qual passamos juntos – isso se formos capazes de pensar em conjunto, nos esforçando para transformar o senso comum em algo realmente comum, isto é, numa compreensão partilhada das ideias em jogo.
Neste sentido, um ditado popular é um prato cheio, porque uma frase mil vezes repetida começa a se parecer com uma verdade, e o filósofo sabe que a verdade não cabe em um conjunto de palavras. Ou seja, se há qualquer conteúdo verdadeiro naquilo que tanto se diz, só poderemos saber ao examinar – e o que é examinar? É submeter o objeto ao escrutínio do pensamento, a partir da própria situação em que foi enunciado, entre as pessoas que o trouxeram à tona. Seria terrível tomar por certo algo que não fizesse mais do que nos acomodar a uma ideia preconcebida sobre o mundo, não é? A filosofia quer transformar aquele que pensa numa espécie de ourives, que analisa com cuidado para compreender o real valor daquilo que observa – e quanto mais pessoas estiverem dispostas a realizar esse trabalho, mais certeza elas terão sobre a avaliação que fazem.
Imaginem a seguinte situação: duas pessoas conversam sobre a vida de uma terceira, discordam de suas escolhas pessoais e, ao perceber que não têm muito mais a dizer ou fazer, terminam o assunto dizendo “cada um sabe o que faz”. Esta é uma dessas frases prontas, repetidas com tanta frequência que não é difícil imaginar alguém a dizê-la exatamente agora. É uma conclusão frequente para uma fofoca, na qual a frase pode ser dita entre risos ou lamentos. Basicamente, se assume, por meio dela, que o outro sabe de sua vida e que não há muito o que fazer sobre isso. O filósofo intrometido, pegou a fofoca pela metade, mas já chega dizendo: “mas será que sabe mesmo?”.
Nessa situação de fofoca bem intencionada, a frase pronta aponta para ideia de que cada um cuida de sua vida, no sentido de que se responsabiliza por ela a partir de algo que conhece sobre si mesmo. No entanto, quando paramos para pensar, a frase parte de um saber pressuposto que o outro tem sobre si mesmo e serve para marcar uma diferença em relação ao que os fofoqueiros acham que sabem. Com o perdão da tautologia, podemos traduzir a opinião da seguinte maneira: cada um pensa que sabe o que faz e julga o que os outros fazem a partir do que pensam que sabem.
Muitos interpretarão essa interferência como uma petulância, arrogância ainda maior do que aquela da perspectiva moralista sobre a vida do outro. Ora, se o filósofo parte do princípio de que não sabe, então por que faz perguntas tão difíceis, impossíveis talvez, de responder? Trata-se da aposta de que lidar com a própria ignorância é melhor do que supor o conhecimento, porque o não-saber tem a vantagem de nos fazer examinar, em cada momento, aquilo que julgamos saber, previnindo-nos de estar enganados sem saber. A filosofia nem sempre chega em grandes resultados, mas prefere sempre uma boa pergunta do que uma má resposta. Assim, o filósofo prefere virar a opinião do avesso do que vesti-la comodamente. Ele diria, provocativamente: “cada um não sabe o que faz”.
Como vimos, o filósofo socrático parte de um princípio segundo o qual desconfia do pretenso saber que cada um tem sobre si mesmo, sobre os outros e sobre o mundo. Quanto intervém, sua intenção é mostrar que existe muito mais a saber sobre aquilo que se pensa que sabe. Constranger uma frase pronta pode parecer falta de espírito, falha de caráter, ausência de modos ou incapacidade de sociabilidade. Na realidade, vinda da filosofia, a intenção é chamar atenção para o que se passa despercebido naquilo que se assume rápido demais. Nesse sentido, a pergunta é um golpe de força pelo qual o filósofo desvia o assunto para um lugar mais interessante: o que sabemos sobre nós? Saber é o suficiente para fazer? Afinal, o que é sabedoria?
O que é o saber?
Talvez seja segurar firme,
como à um travesseiro,
o seu não-saber.
E com ele, explorar o mundo.
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