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A gente faz diversas perguntas ao longo da vida, a filosofia é um dos modos de levá-las a sério. A justiça, o tempo, o amor, a liberdade, a experiência, a imaginação, o método, o sonho… são muitos os objetos sobre os quais temos nos debruçado a pensar. Há quem tenha dedicado uma vida inteira a perseguir apenas alguns deles. Ainda assim, parece que no fundo de todas as questões ressoa um imperativo que atravessa a maior parte do que se pensa e que justifica até a mais estranha das obsessões: a felicidade.

Por maior que seja a diferença entre tudo o que foi pensado ao longo da história da filosofia, o tema da boa vida aparece como uma costura que aproxima todos os esforços. Os projetos de pensamento mais heterogêneos se encontram sob a necessidade de dar dignidade ao fato de que estamos vivos e queremos viver bem. Assim, a felicidade não é apenas mais um dos temas filosóficos, ela é o que justifica todo o esforço. Ao revirar os livros de filosofia, encontramos muito menos a pergunta “o que é a felicidade?” do que a própria felicidade como questão de fundo que faz emergir uma miríade de interrogações. 

Epistemologia, estética, política, lógica, ética, metafísica estão internamente relacionadas pelo desejo de pensar melhor para viver melhor. Nesse sentido, a filosofia pode ser pensada como um pequeno sistema de planetas a orbitar o tema solar da felicidade. Algumas questões estão mais perto do centro e, assim, mais diretamente relacionadas com a necessidade de viver bem, outras estão mais longe, mas nunca suficientemente distantes para desconsiderá-la. De todo modo, é a felicidade que coloca um centro de gravidade e mantém o sistema coeso. Ainda que diferentes filósofos e filósofas discordem sobre a posição, a ordem, a relevância dos planetas, não encontramos ninguém que tenha pensado para ser triste.

O que mais senão o desejo de felicidade poderia dirigir tamanhos esforços no pensamento? O problema é que, apesar de fundamental, a felicidade é uma ideia impossível de representar: ela surge, aqui e ali, vez ou outra, um tanto imprevisível, nos mais diversos modos de vida. Ou seja, não há imagem capaz de aglutinar em uma só perspectiva o que se apresenta em um florescimento tão variado. Não há nada menos filosófico do que a tentativa de capturar a felicidade em uma receita: nenhum passo a passo é capaz de representar o movimento de um pensamento que se faz a partir da felicidade, porque sentir-se bem dispensa a ideia.

A filosofia não é um caminho para a felicidade, ela é um desejo de fazer da felicidade um caminho para pensar, e é por esse motivo que a felicidade não é uma pergunta. É claro que se pode perguntar sobre ela, afinal podemos perguntar sobre qualquer coisa, mas nem todas as perguntas são boas. O problema da pergunta sobre a felicidade está no fato de que, transformada em questão, ela se esvazia de tal maneira que qualquer resposta acaba por projetá-la na distância, como fim último de todos os esforços. Em outras palavras, a busca pela felicidade nos leva a olhar para o horizonte e nos faz esquecer de sentir os próprios pés. Mais do que uma terra perdida, a felicidade é o oceano no qual a vida filosófica navega. 

Se estamos mergulhados na felicidade, então podemos dizer que somos todos naturalmente felizes? E como explicar a existência da tristeza? Estas perguntas são derivações da nossa insistência em pensar a felicidade como pergunta separada de todo o esforço do pensamento, e leva inevitavelmente a paradoxos sem solução. Podemos destacar dois deles: primeiro, a pretensa simplicidade do ser feliz, tão defendida pelo senso comum; segundo, a impossibilidade do ser feliz, visto que o mundo é tão injusto. Vamos passar por esses argumentos separadamente.

A ideia de que a felicidade seria resultado de uma vida simples leva à propostas do tipo “simplifique tudo”, “menos é mais” ou “quem complica a vida somos nós”. Por mais que haja alguma verdade nessas opiniões, elas não deixam de ser bastante primárias, porque desconsideram o fato de que há determinadas situações em que nem todo o esforço do mundo seria capaz de simplificar. Pensar a felicidade como um elemento constituinte do pensamento não implica na sua simplicidade, ao contrário, nos leva a considerar a complexidade de condições para que ela seja efetivamente vivida.  

De outro lado, existe o argumento que condiciona a felicidade à correção do mundo. Nesse caso, a injustiça é o que impossibilita a felicidade, logo seria preciso mudar o mundo para ser feliz. Mais uma vez, essa opinião não está completamente equivocada, mas parece deixar de fora o fato de que a vida não se subsume a uma só categoria, como a “injusta”. Aqui, o paradoxo está no fato de que a felicidade seria, ao mesmo tempo, possível e impossível; ou, em outras palavras, de que viver é experimentar a impossibilidade de algo que sabemos possível. Pensar a felicidade como traço fundamental da filosofia não nos obriga a submetê-la a uma das partes de seu sistema.  

São dois extremos que mostram a impossibilidade de reduzir o tema da felicidade a apenas uma de suas abordagens conceituais, como a ética ou a política. Cedo ou tarde, precisamos admitir que o tema da boa vida não pode ser colocado como questão sem que se levante em torno dele toda uma série de reflexões dignas de um sistema propriamente filosófico. Em resumo, a conclusão a que somos obrigados quando teimamos em tratar a felicidade como pergunta é a de que, para dar uma resposta com o mínimo de consistência, precisaríamos dedicar uma vida de pensamento – a grande questão é que isso jamais poderia ser feito sem experimentar a própria felicidade nele. 

Quem nunca percebeu a felicidade no Sol a atravessar a copa de uma árvore terá tanta dificuldade de entender este texto quanto aquele que nunca sentiu ressoar em seu corpo os gritos da multidão a reivindicar direitos. É da natureza da felicidade exigir uma vida de pensamento. Por esse motivo, em vez de correr atrás de uma simples definição, o que a filosofia faz é pensar as condições que fazem da felicidade menos uma conquista do que a constância que possibilita o próprio pensar. Ou seja, a felicidade não está fora do pensamento, como a cenoura que faz o burro caminhar; ao contrário, a filosofia e a felicidade se confundem, como virtudes de uma vida que toma a si própria nas mãos.  


Referências 

Dias Perfeitos, filme de Wim Wenders
Alain Badiou, A metafísica da felicidade real
Platão, A República
Espinosa, Ética


Como citar

LAURO, Rafael. A felicidade não é uma pergunta. Razão Inadequada, 2024. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2024/04/15/a-felicidade-nao-e-uma-pergunta/>. Acesso em: [inserir dia, mês e ano].
Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Maurício Santos
Maurício Santos
18 dias atrás

O ser humano é um bicho que precisa de uma “metafísica” p existir sendo que mesmo Nietzsche um fervoroso ateu tinha sua própria ” metafísica”
E por meio dessa metafísica o ser humano faz as pazes com a existência e consegue levar a vida mesmo perante as dificuldades…

Maurício Santos
Maurício Santos
18 dias atrás

Sempre tem algo interessante para ver aqui no dote mais uma vez arabéns pelo trabalho