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O jovem levanta o braço direito em riste, mão aberta, dedos juntos e a palma voltada para baixo. O olhar frio e inflexível comprova a consciência da impetuosidade do ato e o desprezo por todos à sua volta, que olham horrorizados. Ato contínuo, outro braço se destaca da multidão, bíceps e o tríceps trabalham juntos, numa cadência perfeita, enquanto a mão, fechada em punho, acerta o queixo do jovem e o derruba. A cena toda dura apenas alguns segundos, um gesto que vale mais que mil palavras.

A defesa da liberdade irrestrita de expressão é uma tensão constante nos debates atuais. A questão começa interessante: existem coisas que não devem ser ditas ou podemos dizer tudo o que se passa em nossa cabeça? Ora, se a finalidade da sociedade – enquanto ajuntamento humano funcional – tem como objetivo uma vida melhor, o aumento da potência dos indivíduos que se beneficiam desta associação, então toda a questão da liberdade de expressão precisa ser pensada conjuntamente com outras perguntas: ela promove a paz, garante a felicidade, incentiva a ajuda mútua? Em outras palavras, quando a liberdade de expressão se torna perigosa?

Toda comunidade tem uma intenção simples e direta: uns se associam a outros para viver melhor. É por isso que interagimos e criamos instituições. A vida em sociedade parte desta ideia simples de que esta comunicação permite encontrar maneiras melhores de viver. As pessoas estão em posições diferentes e por isso pensam coisas diferentes, que precisam ser discutidas e se possível ajustadas. Quem vive junto, então, precisa se comunicar, mas isso significa dizer tudo o que pensa? Sim, quando a fala busca uma vida melhor, pois este é o objetivo. Ou seja, uma única regulação se impõe acima de todas: é proibido todo e qualquer discurso que impeça a vida em comunidade.

Vemos como a questão da liberdade de expressão encontra um limite muito claro que precisa ser formulado com cautela: como os pensamentos e discursos convém para aumentar a Justiça? Dito de outro modo, a Justiça está acima da liberdade de expressão, porque o oposto é simplesmente absurdo, a liberdade de expressão não pode ser usada para defender a injustiça. Ou seja, a linguagem em em função da vida em sociedade.

Deste modo, qualquer opinião que quebre o pacto de ajuda mútua é perigosa para a sociedade e deve ser coibida. Entretanto, não estamos falando aqui de discursos ingênuos e simplórios, não se trata de uma ignorância facilmente corrigível. Isto porque quem pede liberdade de expressão irrestrita normalmente está defendendo a liberdade de opressão. Frases como “não gosto de judeus”, “me sinto superior aos negros”, ou “acho que as mulheres devem ficar em casa”, não são mera opinião, são a tentativa explícita de submissão do outro. Isso nos mostra que o desejo de liberdade de expressão irrestrita muitas vezes é uma espécie de egoísmo que diz: eu quero as coisas do meu jeito.

Dito isso, passemos a outro ponto, ninguém quer ser escravo, todos querem reinar. Ou seja, é natural que alguém queira se colocar acima do outro, aliás, é natural as pessoas colocarem sua felicidade acima dos outros e querer que suas vontades sejam atendidas. Falando de modo mais direto: todos têm um ditador adormecido dentro de si. Ora, se o egoísmo é o desejo de reinar sobre os outros, então, o que fazer? Há uma diferença importante aqui, ser egoísta é natural, mas o individualismo absoluto é uma ilusão, porque este tipo de “liberdade” (sim, podemos colocar entre aspas), no fim das contas, é uma luta por sua própria servidão.

Caso o desejo do individualista seja plenamente conquistado, ele nos faria retornar para um estado de luta de todos contra todos, onde a liberdade é reduzida drasticamente. O individualismo total nos aproxima do estado de natureza onde as ações não são mediadas por nenhuma instituição, onde reina a lei do mais forte, do mais rápido, do mais esperto, do mais violento. A semelhança com a competição contínua e universal do capitalismo não é mera coincidência.

É fácil perceber que não se aumenta a liberdade simplesmente dando liberdade de opinião irrestrita, uma coisa não corresponde à outra. Este espontaneísmo parece fácil, mas é muito perigoso. Porque enquanto a opressão é natural, a liberdade é construída com muito trabalho. Não é no espontaneísmo que encontraremos a felicidade, é na relação, na troca, na criação conjunta que ela acontece. E esta criação implica estabelecer contratos, regras, limites, organizações, instituições e acordos.

A liberdade de expressão irrestrita, ao cruzar este limite, apenas parece visar o bem da democracia, mas de modo algum alcança seu fim, porque enquanto finge mirar na liberdade, quase sempre acerta na servidão. Sendo o mais claro possível: a liberdade irrestrita de opinião nos leva a lutar pela servidão como se fosse a liberdade, pois abre espaço para dizer “queremos menos liberdade, menos direitos, mais opressão, mais mortes”. Ora, ninguém pode dizer “quero ser livre para ser escravo”, seria como dizer: “quero ser livre para subir para baixo”. Então só pode dizer: quer ser livre, não escravo, e isso depende da não opressão do outro, da construção conjunta.

Enfim, se a liberdade de expressão irrestrita é uma idiotice, por que ela se mantém? Porque é muito difícil combater a besteira. Ela seduz, parece reluzir como ouro, e encantados por sua beleza aparente, não vemos que ela cheira a bosta. Cabe então a nós elevar o pensamento o máximo possível, para não sermos enganados. Como fazer isso? Uma das maneiras é questionar nossos primeiros pensamentos e abrir espaço para ouvir o inaudível, sentir o insensível, pensar o impensável. Aquilo que está fora da constituição superficial da nossa subjetividade, aquilo que não somos inicialmente capazes de ver.

Parece estranho, mas os cientistas fazem isso o tempo todo, com microscópios e telescópios eles veem o invisível. Nós também podemos fazer isso. Como? Pensando com os pensamentos que destoam, com as vozes dissonantes. A besteira ganha quando consegue dizer em uníssono: “viva o mesmo, viva a repetição, viva a opressão, viva o status quo”. Quando ouvimos estas besteiras ficamos hipnotizados, elas inundam nossa mente e impedem de respirar novas ideias. O besta fala para dizer que não há mais nada para ser dito. Enquanto toda minoria mostra que existem outras maneiras de pensar e de viver. Estas vozes expressam mundos completamente diferentes dos nossos, estas sim devem ser ouvidas.

Ilustrações de N.C. Wyeth

Referências

  1. Espinosa – Tratado Teopolítico
  2. La Boétie – Discurso da Servidão Voluntária
  3. Popper – Paradoxo da Tolerância
  4. Daniel Defoe – Robinson Crusoé
  5. Michel Tournier – Sexta-Feira ou os Limbos do Pacífico


Como citar

TRINDADE, Rafael. Discurso da Servidão Individual. Razão Inadequada, 2024. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2024/06/24/discurso-da-servidao-individual/>. Acesso em: [inserir dia, mês e ano].
Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Marcelo
Marcelo
3 meses atrás

Rafael, bela reflexão em suma digo: quebrar o egocentrismo em nós humanos é mister mesmo sabendo que o ego ficará adormecido mas latente e na espreita para manifestar -se.