Existem coisas que só podem ser compreendidas quando são colocadas em contato. Uma palavra qualquer – como “inefável”, por exemplo – depende de um arranjo específico para surgir: conectamos as letras inventando um novo movimento para a boca – e graças a esta redistribuição do espaço entre consoantes e vogais nos tornamos mais capazes de falar sobre o amor. O mesmo se passa numa melodia, uma determinada sequência de notas unidas em um só fôlego pode nos fazer levitar. Uma imagem também, pois olhar não deixa de ser uma maneira de sentir as coisas tocando os olhos, e isto explica porque alguns filmes nos fazem chorar. Tocamos e somos tocados pelo mundo a todo momento. Não há nada, porém, que seja tão didático na compreensão do contato quanto o encontro dos corpos.
A pele é o paradigma de toda superfície. A maior parte das interações é definida pelo que aproximamos ou afastamos dela: uma cor de tecido ou batom, um perfume de madeira ou flor, o traço de uma tatuagem ou cicatriz, a altura do salto ou da saia – são nossas maneiras de fazer interface com o mundo. A depender de como são combinados os elementos, algumas pessoas vão querer te levar para cama, enquanto outras podem tentar te matar. Seja como for, a maneira como adornamos o corpo indica os mundos com os quais fazemos contato. Se trocar um shorts por um vestido pode alterar tão significativamente as relações, então imaginem o quanto a nossa subjetividade não é constituída pela experiência do contato entre nossos corpos nus.
O pensamento não costuma ser o protagonista dos momentos em que nossos poros se encontram – e ainda assim compreendemos alguma coisa. O que será que será? Que vive nas ideias desses amantes? Não sabemos dizer ao certo, mas que vive, vive. Apesar disso, dizem por aí que os amores, desses plurais, promíscuos mesmo, não são dignos de grande filosofia. São os mais vulgares, estes homens eruditos, que reduzem todo o conhecimento à pureza do espírito, e mal conseguem disfarçar o nojo ao falar do sexo como ímpeto cego que desaparece depois de satisfeito o instinto. A vontade de saber é superior, dizem eles, pois nunca cessa, e os castos que a ela se entregam por inteiro é que são verdadeiramente ousados. É grande a ignorância de quem acredita que só se pode conhecer com tinta e papel, seria muito divertido saber no que pensam quando trepam.
Nós, que não somos moralistas, descobrimos em ato que o fundamento do erotismo é o contato. Ao mesmo tempo, percebemos que a tensão erótica depende do espaço: precisa existir a distância para podermos nos aproximar. Ou seja, o espaço, apesar de estéril, é o intervalo que permite aos corpos que se encontrem. O que isso significa? Que não há tesão que resista ao puro contato, à luz plena, à exposição total, à verborragia da razão. O silêncio contém seus mistérios, e não é pequena a função da pausa entre as notas de uma melodia. Há algo de fundamentalmente excitante no movimento de ir e vir, de colocar e tirar, de tensionar e relaxar, de mostrar e esconder. A erótica sobrepõe estes contrários como forma de prolongar e multiplicar os desejos, mas não é um jogo assim tão simples, requer uma observação atenta à interação dos corpos.
O sexo é uma maneira de fazer os corpos se entenderem, colocando-os tão perto, mas tão perto, que algo se transmite sem necessidade qualquer de mediação, escorrega pela própria pele, e se expande no próprio ato pelo qual se compreende. Na cama, estamos livres para avaliar o bom e ruim a partir daquilo mesmo que acontece. Deitados uns sobre os outros, encontramos nossos prazeres sem a necessidade de recorrer a nenhuma teoria do conhecimento, senão aquela do próprio encontro. Geralmente não acontece de primeira, então seguimos tentando na segunda, na terceira, e assim continuamos, enquanto existir no toque uma centelha. Não é todo dia, mas há certamente um aprendizado, que percebemos na ocasião em que os fluídos se misturam em júbilo sobre a superfície esgotada de nossos ventres e faces e juntas e dorsos, em nossas mãos e bocas.
Se há uma sabedoria sensual disponível na superfície dos corpos, então por que ela parece tão inacessível a tantos e tantas de nós? Uma hipótese: o que se descobre entre os corpos está, justamente, entre eles e, por esse motivo, só pode ser compreendido se houver alguma sensibilidade para o que não está nem em si nem no outro, mas no meio. O que há de mais interessante na relação dos corpos está na mistura, naquilo que só se pode fazer junto. E parece que estamos cada vez menos disponíveis para isso, buscando o prazer a despeito dos outros, tratando os corpos alheios como objetos de autossatisfação.
Todos nós corremos esse risco, mas os homens, cisgênero em especial, são os que mais têm perdido esse campo de experimentação conjunta que se apresenta entre peles, porque estão tão presos a imagens de como o sexo deve ser, que deixam de perguntar sobre aquilo que ele pode ser. Na insensível performance de seus prazeres, eles esquecem que o encontro dos corpos é a possibilidade de um entendimento comum. Daí a necessidade de uma crítica da pornografia que não se reduza ao moralismo, mas seja capaz de apontar em que medida a exposição reiterada à determinadas narrativas sexuais pode acabar com a capacidade de sentir a particularidade de cada encontro.
É estranho ter que lembrar que o sexo é um ato coletivo. Até mesmo quando nos tocamos sozinhos, estamos tomados pelo desejo de interagir com os outros. Ser criativo na experimentação do próprio corpo é uma forma de reinventar o imaginário e redescobrir a sensibilidade da pele. Embora tanta gente pense que se trata apenas de um alívio solitário, até mesmo vergonhoso, a masturbação é um exercício de alteridade, a partir do qual os objetos ganham vida própria. Dildos, sugadores, vibradores, massageadores, quinas e sofás não são consolos nem substitutos, são atores coadjuvantes de uma exploração protética do mundo, tanto quanto os óculos.
A pele é uma superfície intensiva que distingue o dentro do fora, o perto do longe e, assim, é a nossa maneira de encontrar medidas na relação erótica. Compartilhá-la com os outros é se entregar às alegrias que moram na intersecção. Ali, com os corpos em contato, temos a chance de aprender na prática uma das leis fundamentais da ética: o que se considera bem ou mal depende do que acontece na própria relação. Neste sentido, a melhor transa não é a que simplesmente faz gozar, mas aquela onde buscamos juntos o lugar em que nossas medidas particulares se cruzam. Estamos sempre descobrindo que língua falam os outros, e o orgasmo é uma ocasião para grandes aprendizados.
que vontade de sumir e ficar nesse texto 🙂
haha, comentário intertextual!
(eu também)
Que texto, senhoras e senhores, que texto!
Que bom que gostou, xará!
<3